Capítulo 46

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Coloquei minha mão em minha perna, meu tênis balançando em cima da minha coxa. A minha postura relaxada ainda não impedia do meu corpo gritar em gestos que não havia nada relaxado em mim. Ainda assim, encarei meu psicólogo que me olhava atentamente, com um pequeno sorriso, na poltrona do outro lado da sala.

- Não, eu não falei com ela se é isso que você quer saber - murmurei, voltando a descruzar as pernas e apenas encostar minhas costas no couro do sofá.

- Já fazem cinco dias, por quê acha que ainda não falou com ela? - Dr Hernández perguntou suavemente.

Não soube responder. Talvez fosse porque eu não sabia como encarar Marília depois do que gritei em sua cara, depois que mostrei exatamente o que estava vivendo em minha mente desde que saí da prisão. E por isso saí do quarto e me escondi no de Taylor até ter certeza que Marília não estava mais lá. Liguei pro Dr Hernández na manhã do dia seguinte porque eu queria fumar, porque eu queria beber, porque eu queria me jogar atrás de um volante e acelerar o carro até que eu não soubesse identificar a paisagem ao meu redor.

E por isso essa era a segunda vez que eu estava o vendo apenas nessa semana. E ele já tinha me avisado que iriamos nos ver duas vezes por semana por algum tempo. Eu estava tão confusa e chateada comigo mesma que nem pensei em retrucar.

- Não sei - respondi por fim - Tenho medo que ela não queira olhar mais na minha cara - admiti segundos depois, encarando meus tênis sujos de graxa, a calça do macacão cobrindo parte do sapato.

- Por que ela faria isso?

Ergui meu olhar ao ouvir o tom quase confuso do doutor. E suspirei. Porque ele também não sabia exatamente como eu me sentia. Porque eu nunca contei tudo, apenas pedaços. Mordi meu lábio inferior, o encarando um pouco nervosa.

- Sabe que pode dizer qualquer coisa dentro dessa sala, certo? - ele me encarou carinhosamente.

Concordei com a cabeça, antes de tomar uma grande respiração, soltando o ar devagar, como ele costumava me incentivar a fazer. E antes que eu percebesse, eu já estava falando, me sentindo confortável o suficiente para o deixar saber o que estava acontecendo em minha mente. Porque eu ainda escutava essa certa voz que dizia com tanta firmeza que eu nunca teria Marília novamente, e porque eu sempre acreditava.

- Maraisa - Dr Hernández disse meu nome com calma, quando acabei de falar, deixando sua caderneta de lado, cruzando as mãos antes de me encarar - Você sofreu não somente abusos físicos, mas também psicológicos durante os meses que esteve presa - ele lembrou, um tom tão suave que parecia quase amenizar as palavras em minha mente - Quando nos sentimos em perigo, buscamos um meio de sobrevivência. Você estava tentando sobreviver - explicou quase didaticamente.

- Não era só isso - neguei com a cabeça - Eu acho que me acostumei, não sei, em algum ponto se tornou rotineiro e então era fácil e, eu não lembro direito, é tudo tão confuso - fechei os olhos com força, tentando me lembrar de dias específicos, mas como sempre eu só lembrava de flashes se cenas que gritavam apenas uma coisa para mim - E então eu gostava. Que tipo de problema eu tenho!? Como eu poderia gostar de ser tocada por alguém que me machuca? - questionei irritada, sentindo a fúria em meu peito.

Toda a raiva direcionada a minha própria pessoa. O enjôo que sentia todos os dias no presídio, voltados para mim. Porque eu só podia ser algum tipo de louca ou um nível doente de masoquista. Não era normal.

- Ei, Maraisa, respire - ouvi meu psicológo pedir e tentei obedever, fechando os olhos por uns segundos, focando no movimento do meu peito - Olhe para mim - pediu gentilmente, então encarei os olhos castanhos - Quando estamos em perigo, buscamos sobrevivência. Mas além disso, nosso cérebro procura formas de escapar da realidade que nos machuca - argumentou em um tom manso - Como perdas de memória após traumas, ou evitar um assuntos ou pensamento. Nossa mente procura por qualquer ação que possa nos fazer esquecer de algo por um momento, desviar nossa atenção, nos fazer acreditar que estamos bem. Para fugirmos um pouco da dura realidade.

Lost Girls - MalilaOnde histórias criam vida. Descubra agora