Uma irritante rotina

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O despertador toca no pequeno armário pregado a parede ao lado da cama, mas Welleson já estava acordado, olhando fixamente para cima como se estivesse no pause de um filme.
Respirou profundamente, piscando algumas vezes para tentar entender o dia que estava começando e então, se vira para desligar a melodia irritante que era exalada não tão alto para não fazer barulho desnecessário pelo alojamento.
Eram seis e meia da manhã e ele precisava estar no refeitório para o café da manhã em vinte minutos, mas sem pressa, levanta e dá bom dia para o colega de quarto que já estava pronto na cama debaixo e vai até o banheiro.
O processo todo não leva mais de quinze minutos, mas todo tempo que ele passa no complexo do interior do estado em que trabalha, parece um longo e cansativo elástico que se expande de forma lenta e dolorosa, de proposito, para mostrar para a pessoa que irá receber o impacto depois que ele for solto, saber que a dor será imensa ao fim.
São quatorze dias nesse ciclo tedioso, apesar de amar o que faz, detesta ficar tão isolado de tudo.
Ele dá aulas para crianças ribeirinhas que não tem acesso à educação, felizmente, concursado pelo estado e se voluntariou para fazer isso, já que ninguém mais o faz, porém, não esperava encontrar tanta gente absurdamente chata, que se intrometia em seu trabalho a cada segundo, transformando os dias que deveriam ser de calma e felicidade por espalhar conhecimento, em longas horas coléricas.
Tomou seu café e logo correu até a sala de aula que hoje não seria ministrada por ele, já que logo pegaria um avião para voltar a capital, de início a sua folga.
Ele adorava se despedir das crianças, pois somente por elas que ele aturava tudo que passava ali.
Sentia uma enorme obrigação de ficar ali, cuidar delas, tentando demonstrar todo incentivo possível para que elas buscassem no futuro todas as alternativas e opções que a maioria daquelas pessoas isoladas não tinham.
Quando já estava no avião, ficou pensando em como sua vida, apesar de estar bacana, meio que está estagnada. Não que ele estivesse deprimido, ou insatisfeito... Ok, talvez estivesse sim um pouco insatisfeito, mas apenas porque sabe que algumas ancoras o prendem a essa situação que parece incrivelmente permanente.
Como aqueles castigos dos deuses gregos em que uma pessoa era obrigada por toda a eternidade a ficar comendo apenas uma maçã de uma macieira, mas sem perder a fome.
Chegar em casa era uma sensação eterna de sentir nada. Welleson adorava a sensação de sua cama dura e king. Amava seu ar-condicionado no mínimo, congelando sua garganta, mas por algum motivo sentia-se um completo intruso, talvez por passar quatorze dias longe...
-filho que surpresa – sua mãe dissera ao recebe-lo na porta.
Não que ele não tivesse avisado que voltaria naquele dia, mas ainda assim, sua mãe não parecia se dar ao trabalho de decorar as datas de suas viagens. Sempre que ele ia, ela dizia que ele estava indo cedo demais e sempre que voltava, ela era pega de surpresa.
Rotina.
Seu pai estava dormindo, três horas da tarde e sua irmã, se arrumando para ir a faculdade.
Duas coisas que ele achava um tanto desnecessário.
Largou suas coisas na primeira porta depois da sala, seu quarto, e se jogou na cama sem lençol apenas porque precisava olhar para o teto e forçar em sua cabeça que ele estava em casa.
Aquele era seu lar, não precisava sentir falta de outra coisa que ele não sabia dizer o que era.
Notou algo diferente na mesa retangular baixa, onde ficava seu notebook. Um urso de pelúcia um tanto pequeno, mas lindo e decorado. Aquilo não era seu.
-mãe? De onde surgiu isso? – ele abraçou a pelúcia com força, amando a sensação que ele lhe trazia.
-ah, sua irmã ganhou no dia em que fomos no shopping almoçar. Ela queria brincar naquelas máquinas.
-claro – ele disse já desinteressado.
Sua irmã, Lessandra, era a definição de sorte em pessoa. Não existia um sorteio, bingo ou máquinas de azar em que ela não ganhasse e não somente isso, era o que em sua cidade costumavam chamar de “pessoa que nasceu virada com a bunda pra lua”.
Havia uma tia solteirona que se aposentara alguns antes e sem mais saber o que fazer para gastar seu dinheiro, decidiu dedicar parte do salário para Lessandra, ajudando-a com a faculdade e dando-lhe uma renda extra para passar o mês.
Não chegava a sentir inveja da facilidade com a vida de Lessandra seguia, mas certamente se incomodava com o fato de ela ter vinte e tantos anos e nunca ter trabalhado. Via isso somente como um peso para ele no futuro, quando os pais infelizmente morrerem.
-seu pai já falou com a Marinete para ela fazer o sanduiche para o lanche – Eliana, sua mãe dissera, já perdendo o interesse na chegada do filho e indo para o quarto com o celular na mão.
Mais uma tradição: jantar x-salada no dia em que ele chegava.
Gostava de ser parcialmente mimado, mas sabia que isso não era tão sincero quanto parecia.
Quando ele estava em casa, seu cartão de crédito e seu vale-alimentação estava com ele, logo, as duas semanas que estaria junto de sua família seriam as mais fartas em que eles passariam no mês.
Vale lembrar que o sanduiche que o pai pedira, não seria ele quem iria pagar e sim Welleson.
Tomou banho frustrado com a água quente do chuveiro. Acostumou-se com o frio de onde trabalhava.
Era assim por uns dois dias. Ele acordava automaticamente as seis, percebia que não precisava correr para o banheiro e se forçava a dormir já que sua família só acordaria por volta das dez para tomar café e isso lhe dava duas opções: ou fazia o café para tomar ou aguardava.
Mas somente uma das opções era correta, já que não existia uma só vez em que fizesse o café e todos não reclamassem de algo.
Seu pai nem ao menos sentava a mesa quando via que Welleson eram quem tinha feito tudo.
Mas passado esse lapso-temporal e local, ele conseguia respirar tranquilamente e na primeira oportunidade que tinha, ia andar pela cidade. Passear pelos mesmos shoppings, percorrer as vielas do centro apertado e lotado, procurando coisas que não precisava, mas que eram baratas e acessíveis.
Geralmente sua melhor amiga, Cybelle, estava ao seu lado lhe acompanhando.
-e aí, como foi o trabalho? – ela perguntou sentando no banco da lanchonete repleta de frutas pregadas a parede que costumavam ir no centro.
-a mesma coisa de sempre. Mas, eles estão melhorando na leitura.
-serio?! Que bom, Wel. Falei que mudar um pouco a didática poderia ajudar – ela cutucou a cintura do amigo e rindo de forma debochada.
Cybelle também era professora e passou no mesmo concurso que o amigo, porém, não decidiu trabalhar no interior pois sabia que não lidaria muito bem com a pressão de ficar isolada.
Apesar de ser independente, a vida adulta lhe recheou com um pouco de depressão e ansiedade e como sempre foi o centro das atenções por ser filha única, estranhou isso logo de início.
Wel lhe ajudava de todas as formas possíveis, mas sentia-se culpado, às vezes, por ficar duas semanas longe da amiga, principalmente quando sentia que ela não estava bem.
-detesto que você seja a mais inteligente de nós dois.
-e a mais bonita também.
A risada aumenta com isso e logo os pedidos chegam e eles se ocupam em comer e falar de futilidades que somente dois amigos desocupados falam.
Era gostoso, saudável e despretensioso. Era disso que ele precisava, na verdade, depois de passar dias trabalhando e transpassando uma imagem conservadora, fechada e madura, no ambiente tóxico que era seu local de trabalho, cheio de homens homofóbicos, machistas e mal-educados.
Não tinha vergonha ou medo de se declarar gay, mas sabia que a sociedade usaria isso contra ele e ele não podia deixar aquelas crianças sozinhas.
Ainda na lanchonete, um grupo de estudantes entra fardado, provavelmente em seus quinze, dezesseis anos, chamando a atenção de Welleson.
Todos pareciam extremamente felizes.
-olha ali – ele pede atenção da amiga – hoje eles podem ser abertamente felizes, né?
-nem me fale – ela olha rapidamente, sem muito interesse, voltando a comer sua esfirra com gosto – meu cabelo hoje é todo destruído por causa das várias chapinhas que eu era obrigada a fazer para não ser chamada de bombril... mas isso é bom, digo, eles poderem ser quem são.
-é claro – diz baixo, talvez triste – só queria não ter começado a trabalhar tão cedo ou não sei, ter tido mais amigos na escola.
Cybelle o mirou um tanto receosa, com pena, pois apesar de andar apenas com Welleson e uma outra colega do trabalho, no ensino médio tinha um grupinho. Não um dos melhores, mas não era tão solitária quanto o amigo.
-ei, já passou.
-sim, sim – ele concordou, sem conseguir desviar o olhar do casal de garotos de mãos dadas, sem medo, felizes e apaixonados.
Ainda hoje ele não conseguia se relacionar direito, quanto mais com dezessete anos.
Chegava a ser utópico a forma como aquilo era natural para eles. Apesar de inveja, também sentia felicidade. Queria que seus alunos, no interior, também tivessem essa liberdade que as pessoas da capital têm e fazia justamente o que fazia, para que eles soubessem que eles tinham escolhas e que poderiam ser livres para fazê-las.
-hum... porque a gente vem aqui mesmo? – ela disse pegando a conta – foi-se o tempo em que as coisas eram baratas aqui.
Ele a fitou um tanto perdido ainda, mas logo riu, tentando pegar a conta da mão da amiga e como sempre, uma guerra se iniciou para saber quem iria pagar por aquilo.
Rir não era uma coisa contínua em sua realidade, mas era gostoso quando o fazia

Tudo Que For Possível Fazer (Trilogia dos Desejos #2)Onde histórias criam vida. Descubra agora