III 3.4 Ossos

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Ele vagou pelo palácio silencioso e vazio. Já passava da primeira hora de Amadam, a 11ª hora daquela manhã tão difícil para grande parte dos seus súditos.

No dia anterior, a maioria tinha exagerado na bebida, ou se intoxicado com Mágoa de Magnólia, Lírio de Amadam ou qualquer outro preparado que oferecesse um refúgio no sono. Dormir o máximo possível era a melhor estratégia para aquele dia passar mais rápido.

Era o primeiro dia de Amadam, no mês de Amadam e, em homenagem à deusa da paz, aquela que amava fechar os olhos e se entregar a um sono sem perturbações, ninguém diria uma palavra.

Durante todo o dia.

Eram as Horas Silenciosas, um sacrifício difícil de ser executado, mesmo que apenas durante um dia.

Muitas pessoas não conseguiam, roubavam a tranquilidade da deusa deixando escapar sussurros rápidos.

Noa se lembrava de quando era criança e já entendia a necessidade das Horas Silenciosas, porém seus irmãos eram jovens demais. Eles passavam o dia sem compreender por que ninguém estava falando nada, puxando a saia de Agnes, choramingando e fazendo manha.

Na noite anterior, a mãe sempre explicava para os pequenos que, no dia seguinte, eles deveriam permanecer em silêncio para não incomodar Vashï Amadam em seu dia especial. No entanto, quando acordavam, toda a explicação da mãe já tinha sido esquecida. Noa revirava os olhos, irritado com a imaturidade de Niall e Naomi.

Nunca havia passado as Horas Silenciosas ao lado de Hannah, mas, sempre que essa data chegava, se entregava a um devaneio profundo. Não havia ninguém para impedi-lo, ninguém para interrompê-lo. No primeiro dia Amadam no mês de Amadam, ele não precisaria ouvir ninguém dizendo que Hannah estava morta, nem que aquele amor no seu peito era inútil.

Ele poderia apenas fingir.

Então, acordou cedo.

Saiu com Brahumin. Cavalgou pela areia branca de Palacianos e, como se soubesse o que aquele dia permitia, Brahumin deixou que ele o guiasse. Ele seguiu até a fonte onde, mais de uma vez, supervisionara Niall e Hannah, onde a tivera em seus braços mesmo que ainda fossem crianças.

Naquela água fresca, ele entrou e, somente neste dia, fingiu que ela estava ali com ele. Usando um vestido branco encharcado ou, talvez, nem isso. Ele se entregou a qualquer caminho que sua mente torturada permitisse seguir.

No primeiro ano, ele falara sobre como era desafiador comandar dois povos tão diferentes. Contara a ela o que mais gostava sobre os palacianos e como eles eram tão parecidos com ela... Em sua imaginação deturpada, ela ria, boiava na superfície esticando as pernas e os braços, cantava baixo, sem a intenção de impressionar. Ele a acompanhava, cantarolando uma canção antiga, ensinada por Ammiel.

Era uma canção que, por muitos anos, havia ficado esquecida no fundo da sua mente, mas graças a um amigo que se lembrara dele, agora ele conseguia reproduzi-la.

Hannah tinha partido há apenas um ano quando Jullian Cenek pediu uma audiência com Rariff, completamente fora de época. Era comum que visse Cenek nas formalidades e bailes dos clãs, mas o raja nunca tinha feito uma visita como aquela, chegando sem ser anunciado ou sem uma intenção clara.

A surpresa de Noa foi grande quando o raja informou na frente de seus conselheiros que queria uma jantar particular com Rariff, sem mais ninguém.

Ele não conseguia imaginar o que Cenek poderia ter a lhe dizer que fosse tão secreto.

No entanto, concedeu o jantar. E maior ainda foi a sua surpresa quando o raja colocou um pequeno vidro à sua frente.

– Agradeço pelo jantar tão delicioso – Cenek abriu um sorriso, quando viu a mesa recheada entre os dois. – Meu presente parece pequeno diante de tanta fartura, mas eu garanto que não é.

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