VIII 8.2 Adaga

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— Você não deveria estar aqui — uma voz ecoou na caverna escura e úmida.

Hannah não se surpreendeu quando a ouviu, já tinha imaginado que seu passeio noturno fosse despertar uma visão na ghaya.

— Eu precisava vê-lo — se justificou, mirando o grande Portal à frente. Agora que estava inteira, já conseguia calar as vozes dos deuses que sussurravam nos seus ouvidos sempre que ela via as inscrições. No entanto, bastava se concentrar em uma delas para que a pronúncia se materializasse na sua mente, assim como seu significado, em um sinal de que, apesar de Alim ter escrito uma profecia mortal com seu nome, ela ainda era uma favorita dos deuses.

Que ironia.

Na penumbra da caverna, conseguia ver as milhares de inscrições que contornavam o Portal, mas era incapaz de lê-las integralmente sem luz.

Para fazê-lo seria preciso se aproximar, conjurando o fogo em sua mão... Ou então, usar a energia para acender as antigas tochas esquecidas nas paredes de pedra.

Porém, receava a proximidade do uso da sua energia com o objeto da profecia.

A curiosidade atiçava o desejo de se aproximar, mas assim que deu o primeiro passo adiante, Serena se pronunciou novamente: — Não é uma boa ideia, Hannah. Os deuses não gostam da nossa presença aqui.

— Como sabe? — desafiou, os pés descalços experimentando a frieza da água que rodeava o Portal.

— Da última vez que eu estive aqui, eles brincaram com os nossos sentidos...

— Eles?

— Os deuses. Eles gostam de nos lembrar que podem tirar tudo o que temos. Fizeram isso com Josh... Eles o ameaçaram.

— Eles nos criaram e nos deram tudo o que temos. É justo que possam tomar tudo de volta — defendeu Hannah, pragmática. Se tinha uma coisa que ela sabia era que nada adiantava ir contra os deuses. Mesmo assim, passara toda a sua vida tentando evitar uma profecia escrita por Vïc Alim.

Estava exausta das próprias contradições.

Serena se conteve em erguer as sobrancelhas, decidindo não perguntar o óbvio.

Afinal, se os deuses tudo podem, o que estamos tentando fazer?

— Consegue ler algo? — perguntou a ghaya.

Hannah se concentrou, tentando visualizar os trechos que brilhavam sob os anos de lodo.

— As inscrições falam sobre os prazeres de Babakur, sobre a discrepante força dos deuses frente às suas criações... Elas vão ainda mais no passado... Vejo menções à construção do Palácio, ao nascimento de Vïc Bhaskar já em meio aos filhos de laranjeira. E descreve o nascimento de Amadum para tirar a nossa vida eterna. Há um trecho sobre a fúria de Bahija contra Alim, a mágoa da deusa com a morte de seus filhos e a solução de Alim de nos mandar para longe... O silêncio da morada dos deuses e os anos de paz fizeram Amadam dormir demais, alongando as noites. Amandeep quase não brilhava, e as plantas sofriam com a falta do calor e da luz. Os bichos sentiam fome... E, então, nós viemos. Encontramos o caminho de casa... E despertamos Amadam com canto, música, risadas...

Quanto mais Hannah lia, mais claras ficavam as inscrições. Era como se elas se destacassem, apesar da ausência de luz, brilhando por conta própria, insistindo para serem lidas.

— A alegria dos filhos aqueceu o coração de Bahija, coloriu os sonhos de Amadam e fez Amandeep raiar mais cedo para vê-los correndo pelos campos. Anandi logo quis saber tudo sobre eles e Aravind elencou os mais belos. Ayman se admirou com a intensidade de suas paixões, Brahum os congratulou pela impetuosidade. Os gêmeos Bahadur e Babakur não ficaram satisfeitos. Aqueles filhos que retornaram não gostavam de guerras, nem encontravam prazer na dor. Temendo a ira de Bahija, Amadum questionou Alim se eles morreriam da mesma forma e o deus da sabedoria reforçou que a morte os levaria para uma outra vida até que fossem dignos de suas asas. A Bahija cabia a paciência de esperar que seus filhos fossem bons o bastante para se juntarem aos deuses. Há uma parte que não consigo compreender... Sobre Bhaskar, algo sobre um sacrifício que seria um presente para Bahija, para apaziguar a dor de ver seus filhos sofrerem.

O Portal IV - Fios de AlimOnde histórias criam vida. Descubra agora