- Uma semana depois -
Point of view Samanun
- Acho que vou precisar de uma quantidade maior de caixas, não acha?! - Eu falei apontando para os dois pacotes de caixas de papelão desmontadas que Nam segurava. No mesmo instante que terminei de falar, ela arqueou a sobrancelha e segurou o riso.
- Não sobrou muita coisa, não é?
Ela meneou a cabeça negando e me fitou com um pouco de pesar.
Uma semana havia se passado após o acidente, eu já me sentia melhor com relação à gastrite e aos problemas respiratórios que eram sequelas da inalação de fumaça. A tosse e a falta de ar já haviam passado totalmente, a ardência na minha pele também já havia passado. Minha vida aos poucos estava voltando aos seus eixos. Se é que eu sabia o que era estar nos eixos. E hoje, era o dia de recolher os restos que haviam sobrado das minhas coisas no apartamento.
- Me surpreende o prédio não ter sido condenado. - Comentou Song e eu tive que concordar.
- Vai se encontrar com a Kade hoje? - Nam perguntou. Nós estávamos seguindo a calçada em direção ao meu prédio. Andávamos lado a lado, e Song vinha atrás segurando uma bandeja da cafeteria com três copos de café.
- Vou sim. - Eu disse. - Preciso saber a quantas andam minhas finanças, afinal, preciso de um apartamento novo, nova mobília e tudo mais. Não posso ficar morando no seu sofá por toda minha vida.
Song riu, Nam não. A loira não aprovava muito bem a ideia de eu ir embora, apesar de eu estar a apenas uma semana em sua casa. Nam gostava de me manter por perto, dizia ela: "É melhor ter o diabo de baixo de suas barbas, do que mantê-lo no inferno, onde não se sabe o que ele está aprontando". E eu apenas ria.
- Sam, eu sei que não gostava muito do apartamento, mas tem certeza que quer vê-lo assim? - Parando de caminhar, ela me fitou e soltou aquela pergunta. Estava visivelmente fragilizada, imaginando minha reação ao ver meu apartamento destruído.
- Ei, está tudo bem. - Toquei seu ombro e apertei levemente tentando lhe passar segurança. Voltamos a caminhar e finalmente chegamos. Adentramos a portaria e o porteiro me entregou a chave do cadeado que ele havia utilizado para fechar a porta, já que a fechadura não funcionava mais, pois a porta também estava danificada.
Nam mantinha o semblante preocupado, e Song não ficava atrás, a cada degrau que subíamos, seu rosto mudava um traço. Eu ainda estava normal, não esperava nada melhor, nem pior. Sem expectativa alguma.
Quando terminamos o segundo lance de escadas, o corredor se fez longo, parecia ter mil metros. A última porta, no final do corredor, estava trancada com correntes e um cadeado grande. De longe era possível ver as marcas enegrecidas dos queimados no madeiro. Era a minha porta.
- Tudo bem, Samanun? - Song segurou em minha mão com força, olhei para a morena e sorri assentindo. Não entendia o porquê de tanta preocupação, mas, algo me dizia que logo eu iria compreender.
Retirei a chave do bolso e abri o cadeado, logo, as correntes deslizaram pelo buraco feito de forma amadora, apenas para manter a porta fechada, longe dos olhos curiosos e de possíveis ladrões. Nam empurrou a porta, que se arrastou pelo chão rangendo e arranhando o piso de madeira. Meus olhos subiram daquela marca de arranhão e encararam toda extensão destruída daquele lugar que há poucos dias era meu refúgio, meu único lugar certo no mundo. Aquele não era só um apartamento. Era meu primeiro lugar na vida, e eu o detestava por ser escuro, frio e ter tantas lembranças. Naquelas paredes, estavam os primeiros resquícios de minha loucura ao sair de casa sem destino, emprego e dinheiro. Minhas primeiras conquistas resumidas em móveis, discos e quadros. Meus fracassos estavam grudados nas paredes, junto com as memórias de dias bons, risadas, gritos e choro. Mas, em meio à tanto ódio, eu me sentia bem envolvida por aquelas paredes. Eu olhava para elas e reconhecia quem eu era. Agora, eu estava diante àquelas paredes e encarava o estrago.
- Me lembro da primeira vez que vim aqui... - Nam falou olhando ao redor e soltou um suspiro pesado. Estávamos paradas na sala. Encarando a total devastação, sem a menor coragem de ver os outros cômodos.
Bem vinda à residência Anantrakul. - Sorri orgulhosa e abri a porta, dando a passagem para Nam entrar. Ela olhou com deslumbre para as paredes bem pintadas de cor azul, e para o piso de madeira envernizada e brilhante.
- Nossa, é muito bonito mesmo. - Nam disse sorridente dando alguns passos para o centro da sala. - Mas, uma pergunta básica: essa decoração é um novo lançamento? - Sua pergunta me deixou confusa. - Tipo, os móveis... Eles são invisíveis mesmo? - Ela soltou uma gargalhada alta, acabei rindo também.
Sorri com aquela recordação e senti uma lágrima romper minhas retinas e se derramar em queda livre por minha pele. O piso de madeira tinha crateras queimadas e cheias de cinzas. A tinta das paredes foram substituídas pelo tom negro das chamas que queimaram a coloração. Ainda era possível sentir o cheiro de queimado.
- SAMANUN, VENHA VER ISSO! VOCÊ NÃO VAI ACREDITAR! - Song berrou eufórica de algum cômodo mais a dentro. Eu e Nam nos olhamos e tivemos a mesma atitude de sair em disparada procurando de onde vinha a voz da morena.
- Aonde você está? - Perguntei em voz alta, colocando a cara para dentro da cozinha, procurando-a. Ela não estava lá.
- NO SEU QUARTO!
Corremos até o cômodo e meu coração fraquejou, meus olhos não acreditavam no que estavam vendo.
- Uau... - Nam expressou o que eu não conseguia. - Nem parece que o resto do apartamento pegou fogo. Está em perfeito estado!
Eu não conseguia falar, apenas olhava para todos os detalhes daquele quarto que estava exatamente do jeito que eu havia deixado. Meus livros estavam empilhados em ordem alfabética na segunda prateleira na parede ao lado esquerdo da TV. Na primeira prateleira estavam meus souvenires de minhas viagens. Uma pequena réplica da Torre Eiffel em bronze que ganhei em minha viagem para a França. Um camelo colorido de vindo de Dubai, e um globo de neve, com os desenhos da praia de Copacabana na base e uma dançarina de Samba no centro, de quando visitei o Brasil. No outro lado da parede, o lado direito, estavam meus quadros. Dois lado a lado com manchetes de jornal e revistas sobre meu livro. Um do Laranja Mecânica, outro do Star Wars e o maior, que estava no centro, com a capa impressa do 'O último café'. Minha cama ainda estava desarrumada, meu lençol totalmente amarrotado e solto, minha coberta caindo pela beirada da cama. No criado mudo do lado direito, estava minha caneca favorita que tinha meu nome escrito em letras douradas, meu livro 'O amor é um cão dos diabos' ao lado da caneca e a cima do livro, meus óculos de leitura. Andei alguns passos para a frente e me sentei derrotada sobre o colchão macio da minha cama.
- Você não parece feliz em ver que seus xodozinhos estão bem. - Disse Nam, sentando-se ao meu lado e me entregando um copo de café. Song sentou ao lado de sua esposa e todas nós ficamos encarando o guarda-roupas que estava à nossa frente.
- Estou feliz sim. - Falei ao perceber que alguns minutos tinham se passado e eu não tinha dito nada. - Só... Sei lá... Ainda é ruim.
Song se levantou, abriu o primeiro pacote de caixas e montou a primeira. Logo depois, ela abriu as portas do meu guarda-roupas e começou a colocar minhas roupas dentro da caixa. Nam pegou outra caixa e começou a colocar meus livros e depois e rolou meus souvenires em jornal e os colocou na caixa também. Eu peguei uma caixa também e comecei a ajudar Song.
Quando os pertences do meu quarto estavam todos encaixotados, fomos para a cozinha e conseguimos salvar alguns copos, talheres e pratos, no banheiro deu para pegar algumas coisas também. No final do dia, tudo estava encaixotado. Estava eu, Song e Nam sentadas em cima das caixas em total silêncio. Aquele lugar tinha boas lembranças. O primeiro beijo delas ocorreu lá, quando Nam morava comigo após o divórcio. Nossas festas mais loucas foram lá. A comemoração do lançamento do meu livro, meus amores e desamores. Tudo estava bem no meio daquelas paredes queimadas e estava sendo difícil nos despedir daquilo.
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The Last Coffee
RomanceEla era uma escritora no auge de seu fracasso, não vendia mais livros, nem escrevia mais poemas, ainda não havia aprendido o quão bela era a poesia de um coração em desordem. Enquanto isso, do outro lado de um balcão, esperando-a com mais um café qu...