capítulo XIX_ Sonho

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Sonhos... Em momentos inoportunos, são um verdadeiro tormento. Principalmente quando não são exatamente sonhos, ou até mesmo pesadelos. É bem pior quando são lembranças...

Fazendo reviver o passado, os piores momentos da minha vida, vistos em sonho vivido...

Começando quando todo começou a desmoronar.

Eu estava com quatro anos, uma criança, e as crianças raramente sabiam dos problemas do lado de fora, porque não fazia diferença saberem ou não. Mas dessa vez foi diferente, nada poderia evitar que víssemos o mundo real. O sol nem tinha se posto e já se podia ouvir os gritos de horror e gemidos de agonia, podia-se sentir o calor do fogo que incendeia as casas ao redor, o  cheiro de carne queimada. Mesmo assim, ainda nos sentimos seguros, porque os chamados guardiões, responsáveis pelas crianças do orfanato, estavam lá nos protegendo. Juntaram a maioria de nós na biblioteca, que não era muito grande, mas cabia a todos, três dos guardiões fizeram uma imensa barreira protetora, os outros foram buscar as crianças que faltavam. O som continuava intenso, e um cheiro ferroso subia no ar, cheiro de sangue. Pouco tempo depois. Três crianças vieram correndo e cambaleando, uma mais que as outras, estavam cobertas de gosma e sangue, seus olhos esbugalhados e ausentes expressavam o terror que havia ali. Logo depois, veio um guardião, era Gádore, ele era cocho desde antes de o conhecer, estava muito ofegante, ele entra no círculo e já pergunta.

- E os outros? Mais alguém voltou?

Sua resposta foi silenciosa e, ao mesmo tempo, cheia de cochichos.

- Certo, então vou falar com eles - ele diz sem exitar ou duvidar de que estavam vivos.

O que ele estava prestes a fazer é uma magia do norte, que permite a comunicação e localização telepática de qualquer um numa certa distância, equivalente ao seu nível de magia, mas por exigir muita concentração, tem de ser feito em meditação. E é isso que ele faz, senta no chão, cruzando as pernas, e junta suas mãos com apenas três dedos abertos, polegar, indicador e o do meio, assim começando a conjurar o feitiço.

- Detys, tem duas crianças escondidas no banheiro... Cawil, tem três crianças no quarto dentro do armário... Reydon, tem uma criança na sala ao lado, consegue chegar nela? Liári, cuidado, Hirts viu um por aí, há pouco tempo...

Extasiado, com sua demonstração de habilidade, domínio da magia e o jeito com que ele mantinha a calma, parecia ter tudo sob controle. Quatro grupos voltaram, e dois guardiões foram à procura de mais, enquanto os outros se juntaram para reforçar a barreira. Até que Gádore começa a falar com alguém...

- Fala comigo... São quantos deles... A passagem de ar deve dar para as crianças saírem... Não se preocupe, vou pedir para alguém distraí-los assim que elas saírem daí... Ficará mais fácil se estiver sozinha... Mas é melhor ser rápida... Tudo bem, garoto, eu vou guiar vocês... Siga em frente e depois vire à esquerda... Cawil você está próxima a Detys... Ela está no armário de limpeza, com três deles na porta... Ela precisa de uma distração, você acha que consegue?... Ótimo, e vê se não morre... Garoto, agora você vira à direita e depois à esquerda... É a segunda saída...

De repente, um estouro, um barulho de debandada o seguiu, e logo em seguida, um estalo vindo de cima, e quatro crianças caíram do teto. Os guardiões os pegaram antes de se esborrachar no chão. Um a dois minutos depois, vimos a porta abrir e fechar.

- Que bom que chegou inteiro, Cawil, pode abrir a porta para Detys...

Então, a porta se abriu novamente e Detys entrou correndo, e a porta se fechou atrás dela. Ela estava extremamente ofegante, e se jogando no chão, ela perguntou.

- Tá todo mundo aqui?.. Todos bem?.. Relativamente...

- Reydon não vai voltar... Nem a Edywani... E também, dezoito crianças foram com eles... Não tem mais ninguém lá fora... - Gádore respondeu como se tivesse algo preso na garganta.

Um falso silêncio dominou o lugar, e o barulho que vinha de fora era ensurdecedor. Gádore parou de meditar e se juntou aos que faziam a barreira de proteção, não tenho certeza, mas Cawil pode ter se juntado a eles também, mas ainda estava invisível. Detys permaneceu no chão para recuperar as forças. E o som ficava cada vez mais alto, até que começou a ficar distante, dando a impressão de sumir no horizonte. Foi então que seis magos apareceram na porta, eles eram profissionais, exímios lutadores.

- Desculpem o atraso, meus jovens, estávamos enfrentando outro grupo quando soubemos que estavam aqui... Vocês estão bem? Algum ferido?

Ao dizer essas palavras, os guardiões que faziam a barreira simplesmente desabaram, haviam usado muita magia, estavam exaustos. Cawil e seu grupo de crianças finalmente reapareceram, ele foi o meu primeiro contato com o feitiço fantasma. Detys se levantou e reuniu as crianças que estavam feridas. Os magos se aproximaram e prestaram socorro aos feridos, primeiro as crianças e depois os guardiões.

Mas aqueles não eram os únicos magos que haviam chegado, os outros estavam do lado de fora, fazendo a "limpeza", por assim dizer, eles tiravam os corpos e o sangue. Sei disso porque eu mesmo vi, saí da sala quando não tinha ninguém olhando, e vi braços decepados, pernas dilaceradas, viseiras espalhadas pelo corredor e tudo cheio de sangue, e com o cheiro de sangue. Eu estava um pouco tonto e escorreguei e senti o líquido viscoso, e ainda morno nas minhas calças. Eu comecei a chorar, e não pelas partes de corpos espalhadas ou pelo sangue, eu não sabia o que significava, eu chorava por ter escorregado e molhar a minha roupa, e o cheiro era desagradável, o que me deixou bastante enjoado. Então veio um mago ao meu socorro, ele me pegou no colo e apoiou meu rosto em seu peito, provavelmente para não ver mais partes humanas decepadas. Ele me levou aonde os outros estavam.

- Acho que perderam esse aqui - ele me sacudiu no colo enquanto falava.

- Dilorren! O que estava fazendo? - Detys falou, e Cawil se levantou e veio em minha direção.

- Eu... Eu... Eu caí - dizia enquanto fungava e esfregava os olhos a fim de secar as lágrimas.

- {Tudo bem, | pode | entregá-lo, | a mim} - Cawil era mudo, e falou em língua de sinais com o mago que me segurava, e esticou os braços para mim, me chamando e sorrindo.

- Ca-cawil - me estiquei em sua direção até nos alcançarmos.

Ele me abraçou e me balançou, a fim de me acalmar, o que funcionou, eu me sentia seguro e confortável, como se tudo fosse dar certo. Mas infelizmente eu estava errado.

Mas para minha sorte, não precisei reviver o fim dessa história, pois ao longe pude ouvir a Day me chamando.

- Lorrem... Lorrem... Acorda... Você está bem! Lorrem!!!

Acordei com o último grito... No susto. Estava ensopado de suor, minha respiração era das mais ofegantes, e meu coração descompassado, minha visão turva e tudo parece girar. Sinto uma ânsia de vômito quando meu coração começa a se acalmar, ponho a mão na boca e respiro fundo, mas ela não vai embora.

- Preciso sair... - minha voz saiu tremida.

Dayla me tirou da carroça e me segurou enquanto vomitava no meio de pedras. Respirei fundo para me recompor, e quase vomitei de novo, mas dessa vez, pelo cheiro hediondo do ar. Era claro, como o ar intragável em meus pulmões, que nós já estamos em Radamor. Droga! O cheiro é bem pior do que imaginei.

Crónica Dos Magos: Relíquia Dos MortosOnde histórias criam vida. Descubra agora