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CAPÍTULO UM
Havia um vampiro em Cress Haven, e era dever de Wangji extingui-lo.
— Você tem certeza dessa localização? — Wangji olhou para seu companheiro de viagem enquanto a carruagem passava pelas estradas de terra mal cuidadas. O deserto os cercava, as florestas implacáveis do interior do Maine abafando o chocalhar das rodas que cuspiam uma nuvem de poeira em seu rastro.
Dr. Wen  ergueu uma sobrancelha imperiosa, bigode branco e grosso se contorcendo sobre a boca.
— Você tem minhas garantias, Wangji —disse o médico. — A legitimidade dos relatórios é minuciosamente verificada antes de designarmos um homem para o caso. Há um demônio aqui, de cócoras entre a população. Várias vítimas estão desaparecidas. O demônio parece ter preferência por moças. Sua tarefa é identificação e eliminação.
— Não deve ser muito difícil. — Wangji olhou para o rolo de instruções manuscritas, rabiscos de caneta que detalhavam todas as informações necessárias para uma caçada bem-sucedida.  A população da cidade mal chegava a mil almas contadas no último censo. É um tanto desconcertante porque um vampiro se estabeleceria aqui. Alguém poderia pensar que as peculiaridades de um demônio rapidamente identificariam sua identidade entre os humanos.
— Cuidado, Wangji, — disse o Dr. Wen, chamando sua atenção. O bom doutor só usava o primeiro nome de Wangji quando estava preocupado.
—Um demônio, sozinho e isolado, possui muita astúcia e trapaça em comparação com os ninhos que limpamos em Boston e Nova York. Esteja em guarda e vigilante.
Wangji piscou. Seu olhar se desviou para as bestas feitas sob medida no banco ao lado do Dr. Wen. A maioria dos Caçadores preferia armas brancas para prender suas presas em movimento rápido, mas seu mentor gostou do desafio. Ele podia empunhar a arma como nenhum outro, um atirador mestre em tiro com arco, habilidoso na arte de emboscar demônios apesar de seus sentidos extraordinários. Wangji sempre se sentia seguro com o médico, a menos que temesse o próprio médico.
Essa foi uma circunstância em que ele se encontrou uma vez ou duas ou doze. Dr. Wen era um mentor, um líder. Ele também era um assassino, e não pegaria leve com Wangji, não importa o quanto gostasse de seus alunos.
Esta missão não poderia ser tão perigosa, ou a society não teria enviado alguém como Wangji aqui. Eles iriam? Quanto mais pensava nisso, mais certeza tinha de que o Dr. Wen estava prestes a jogá-lo em um poço de víboras. A prova de fogo era o método mais verdadeiro de determinar se alguém era adequado para a vida.
— Senhor? — A lã grossa das calças de Wangji limpava o suor de suas palmas.
A expressão do Dr. Wen suavizou. — Você está no topo da sua classe, querido garoto. Tenho total fé que você terá uma performance mais do que adequada.  Havia um brilho de sentimento nos olhos do homem mais velho. Ele deu um tapinha no ombro de Wangji.
— Voltaremos em um mês para resgatá-lo.
— Um mês? — Wangji gaguejou. — E se eu precisar de extração antes disso? Ou encontro mais do que um demônio solitário?
A afabilidade sumiu do olhar do médico.
— Adaptar é imprescindível meu caro. Recrute ajuda local. Considere esta sua cerimônia de formatura. Mas se você encontrar a situação além de sua capacidade, envie uma mensagem pelo correio. Nossos agentes estarão aqui dentro de quinze dias.
Não houve necessidade de o médico esclarecer mais. Um pedido de ajuda seria considerado um fracasso.
Wangji engoliu em seco, o ronco da carruagem acentuando a sensação do mundo afundando debaixo dele. Não havia nada do lado de fora, exceto árvores cercadas por mais árvores, mas a carruagem estava diminuindo a velocidade. O veículo parou no meio da floresta, o sol poente engolido pelas copas das árvores coníferas, escovando o céu como dentes serrilhados.
— A society lhe concedeu uma generosa quantia para cobrir suas despesas —, disse o médico, — Embora sugerimos que você pratique a frugalidade. Há uma pensão respeitável na periferia da cidade para os lenhadores sazonais que devem acomodá-lo.
A carruagem cambaleou até parar. Dr. Evans abriu a porta da carruagem, gesticulando com paciência mediana para Wangji desembarcar.
O jovem hesitou.
— Está quase escuro, senhor.
— Ah, caralho. — A expressão do médico escureceu. Ele agarrou o braço de Wangji com uma força surpreendente para um homem de seu tamanho e estatura, antes de jogá-lo para fora da carruagem. A mala de viagem surrada de Wangji seguiu um momento depois, saltando resignadamente até parar em cima de suas botas.
— A cidade fica a três quilômetros da estrada de ônibus — Disse o médico. — Eu sugiro que você comece a andar, rapaz, antes do verdadeiro anoitecer.
Sem mais alarde, o cocheiro conduziu os cavalos em um amplo círculo ao redor de Wangji, partindo em um trote rápido de volta na direção que eles vieram.
Dr. Wen poderia pelo menos tê-lo deixado com uma arma adequada. Mesmo um frasco de sangue de homem morto, que retardava a capacidade de cura de um demônio, não seria negligente. Mas parte de seu julgamento foi encontrar armas de oportunidade em um ambiente estrangeiro, não importa quão esparso seja esse ambiente.
Wangji ficou tenso, tomado pelo desejo agudo de perseguir a carruagem e se agarrar à parte de trás até Boston. Isso não funcionaria. Por um lado, o Dr. Wen ficaria terrivelmente desapontado com ele. Por outro lado, era provável que eles o jogassem de volta aqui, desta vez amarrado nos tornozelos.
Ele observou a carruagem até que ela sumiu de vista por entre as árvores antes de finalmente se virar para Cress Haven. Era alarmante como a floresta parecia mais escura naqueles momentos de folga. Sombras deslizavam por entre as árvores, lançando a estrada de ônibus em manchas intermitentes de escuridão profunda. O sol havia cedido firmemente o céu ao crepúsculo, a luz desaparecendo rapidamente a cada segundo que passava. Ele precisava se mexer em vez de ficar no meio da estrada como um pedaço de carne caído da carroça do açougueiro.
Wangji pegou sua valise. O estojo de couro bateu contra sua coxa no ritmo de seus passos, um baque reconfortante enquanto ele seguia pela estrada de terra esburacada. Pedras saltaram de debaixo de suas botas. Seria apenas sua sorte torcer o tornozelo no escuro e ser vítima da vida selvagem local.
Este seria seu exame final? Duvidava que a tarefa o ocupasse mais de quinze dias. O que ele faria na metade restante do mês? Fazer o registro, ele supôs. Talvez pegar um ponto de pesca. Ele tinha ouvido falar que a pesca no Maine era excelente.
Isso resolveu. Inferno, em um assentamento tão pequeno, ele localizaria o demônio dentro de uma semana. Sim, este seria seu teste final e férias para tirar.
Apanhado em planejar seu tempo de lazer, o primeiro uivo o pegou desprevenido.
Wangji congelou, olhando a densa floresta com inquietação. Ele pegou sua faca de bota quando um segundo uivo dividiu a noite que caía, um som estranho e não natural. Calafrios ondularam sob sua pele.
Que diabos foi isso? Ele ouviu o latido de cães e lobos o suficiente para comparar os dois, mas esse som não combinava com nenhum, possuindo uma qualidade que falava com seu instinto profundo de fugir da escuridão faminta.
Um terceiro uivo se ergueu, muito mais próximo desta vez. Algo caiu e estalou na floresta um momento antes que o movimento o fizesse pular. Wangji gritou, cobrindo a cabeça enquanto várias criaturas fugiam da floresta bem em seu caminho. Ele não os reconheceu a princípio, não até que uma raposa colidiu com suas pernas, cega pelo pânico e mordendo as calças de Wangji.
Ele pulou para o lado, de olhos arregalados, quando um rebanho de veados, várias raposas, gambás e um texugo fugiram por ele para a floresta do outro lado da estrada de carruagens. Ele ouviu um sussurro de som acima e olhou para cima para encontrar o voo estendido para criaturas aladas também, uma variedade de pássaros diurnos, assustados de seus poleiros, misturados com os caçadores da noite.
Uma coruja batia freneticamente no alto. Isso o preocupou.
As corujas não se assustavam tão facilmente.
Wangji mudou sua postura, faca em punho e pronto enquanto examinava as árvores. Uma sensação de formigamento percorreu sua pele. Ele teve a nítida impressão de estar sendo observado. Pelo quê? O vampiro vindo ao seu encontro? Improvável. Vampiros não assustavam animais selvagens. Os mortos-vivos estavam abaixo de seu conhecimento. Só os gatos reagiam aos demônios, e não era com medo.
O silêncio o engoliu, caindo grosso e pesado, de modo que sua própria respiração rugiu em seus ouvidos. Wangji olhou fixamente através das árvores, tentando localizar a fonte da perturbação.
Um sopro áspero veio de sua esquerda, perto o suficiente para agitar o cabelo em seu colarinho. Assustado, ele se virou, o medo apertando seus pulmões. Não havia nada lá. Ofegante, ele girou em um círculo completo, apertando o punho de sua faca com tanta força que seus dedos ficaram dormentes.
Seu olhar frenético se conectou com um par de olhos brilhantes dentro das árvores. O rosnado fez sua bexiga apertar. Foi um pequeno milagre que ele não tenha esvaziado em suas calcas quando a criatura invisível de repente saltou para longe. Não fez barulho enquanto decolou pela samambaia, mas Wangji sabia que tinha ido embora quando o silêncio pesado se dissipou.
Ainda se passaram vários longos minutos antes que os sons da vida selvagem voltassem para a noite, agora totalmente caídos, e vários minutos mais antes que os passos de Wangji recomeçassem, embora em um ritmo muito mais rápido. Ele não se atreveu a devolver a faca à bota até que seus passos o levaram pelas primeiras casas de Cress Haven.

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