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CAPÍTULO TRÊS
Este não era o trabalho de um vampiro.
Wangji  não tinha certeza porque ele estava tão certo, mas a ideia ficou lá, chacoalhando em torno de seu crânio, sem vontade de sossegar. A sensação de mal-estar no estômago deixou o gosto amargo de bile na boca, mas ele se recusou a vomitar. Quem sabia da próxima vez que uma refeição grátis apareceria em seu caminho? E, Dr. Wen tinha treinado todos os rapazes para nunca manchar a cena com vômito.
Aparentemente, os outros clientes não aderiram a essas regras.
Os poucos homens do bar que seguiram Wangji  e Wuxian agora estavam nas sombras, vomitando em seus próprios pés. A maioria estava pálida e suada, chamando por um homem chamado Nie Mingjue, que provavelmente operava como xerife. Mais pessoas da cidade chegaram, circulando pela cena, resmungando e se arrastando, um constante murmúrio de angústia. O calor e o barulho pareciam fortes contra a morte escura espalhada pelo chão do beco.
Os sons o inundaram, uma maré verbal no ritmo das batidas de seu pulso em seus ouvidos. A náusea diminuiu quando a faceta da personalidade de Wangji  forjada nas ruas de sua infância se soltou. Essa metade fria, clínica e calculista veio à tona quando Wangji  se agachou ao lado do corpo.
Uma quietude se estabeleceu entre seus ombros enquanto seu outro lado; o lado que nem mesmo os veteranos de notoriedade da Society não entendiam, lentamente absorvia a cena. Ele se concentrou, até que o único som que ouviu foi a batida constante de seu coração. Os detalhes da vítima ficaram mais nítidos. Seu rosto estava intacto, resignação agarrada ao semblante sem vida.
Este assassino não se importava se sua identidade fosse descoberta. Estranho, quando Wangji  levou em consideração a pequena população de Cress Haven. Demônios eram tão raros em cidades pequenas porque não tinham o anonimato da cidade. Foi por isso que a Society considerou esta tarefa um teste. Mas o estado dela...
Quando sua visão terminou de se ajustar à luz dos postes crepitantes, ele pôde ver o que parecia ser sujeira sob as unhas e arranhões nas pontas dos dedos. Ela tentou arrastar seu corpo arruinado para fora do beco, o que significava que ela estava viva por um tempo após o ataque. Não uma morte rápida, mas violenta. Seu estômago estava rasgado; o fedor de vísceras ardia em suas narinas, mas ele o ignorou. Seu olhar mudou, estudando a massa escura e úmida, tentando discernir o que os restos destroçados poderiam ser e o que estava faltando.
Seu agressor arrancou algo dela enquanto ela estava viva e a deixou à crueldade de uma morte lenta. A mandíbula de Wangji  se apertou. Foi uma morte desumana. Isso é o que mais o incomodava. A Society gostava de acreditar que todas as mortes de vampiros eram brutais e violentas, mas havia muitos vampiros que se lembravam de terem sido humanos. Os corpos que deixaram para trás sugeriam culpa e misericórdia.
Este monstro não tinha memória da humanidade.
O olhar de Wangji  vagou, procurando, até que encontrou o que buscava. Ele o arrancou da poça de sangue no estômago dilacerado da garota. Com uma aba exagerada, Wangji  tirou o lenço e cobriu a boca. Ele fingiu tossir, transferindo o objeto para o pano, antes de cuidadosamente enfiar o prêmio no bolso.
Ele olhou para cima para encontrar Wuxian olhando diretamente para ele.
Wangji  ficou tenso, esperando uma reação, mas o momento se rompeu com a chegada de “Nie Mingjue”. Os clientes se separaram para um homem corpulento,  liderando o caminho. Ele chegou ao local em um carrinho aberto e frágil puxado por um rabugento de aparência triste.
— Meu Deus. Que bagunça. — Ele se benzeu e cuspiu. O gesto parecia estranho para um homem da lei, mas a fita métrica na mão do homem realmente confundiu Wangji . O homem ajoelhou-se numa poça de sangue, sem pensar enquanto ensopava as calças, enquanto media o corpo.
Wangji  olhou para os outros. Certamente esse não era o comportamento esperado de um homem da lei, mesmo no campo, onde as profissões se misturavam? Ele era o legista da cidade? Além do gesto de cruz descuidado, Nie Mingjue parecia completamente não afetado pelo estado do corpo, embora a maneira horrível da morte e a idade da vítima não pudessem ser uma ocorrência comum aqui. Wuxian encontrou seu olhar, uma única sobrancelha altiva levantada. Wangji  rapidamente desviou o olhos; os músculos de sua mandíbula se contraíram. Não havia tempo para isso. Ele tinha que perguntar, mesmo que isso chamasse atenção indesejada para si mesmo.
— Perdoe-me, senhor, por que está medindo o corpo?
Nie Mingjue se assustou, como se Wangji  tivesse gritado em seu ouvido. Seu joelho deslizou ainda mais no sangue. Ele não estava ciente da presença de Wangji ? Como ele poderia não estar? Este homem percebeu o quanto ele comprometeu a cena? Wangji  ansiava por intervir antes que mais provas fossem perdidas pelas ações desajeitadas de Mingjue.
O homem corpulento piscou para ele.
— Por quê? É o meu trabalho, garoto, — disse, confuso. Ele franziu a testa e olhou para baixo, finalmente notando seu joelho enquanto avançava em direção a um nó de intestinos. — Ah, incômodo, minhas melhores calças!
Wangji  ficou boquiaberto. O homem permaneceu inconsciente da atenção, resmungando sobre suas calças arruinadas e a inconveniência de recolher corpos no escuro. Este homem não era um legista ou qualquer outro oficial da lei. Ele era um guardião de túmulos glorificado, aqui para medir os restos mortais da menina para uma caixa de pinho.
— Mas e quanto a uma investigação? — ele disse. — Para determinar a causa da morte?
Nie Mingjue fez uma careta.
— Pode ser devido a suas entranhas saindo, eu diria.
Um músculo se contraiu atrás do olho esquerdo de Wangji . Onde estava a lei nesta cidade? Cress Haven estava no limite do deserto, mas tinha que ter algum tipo de escritório, mesmo que apenas para resolver disputas e manter a civilidade. Se não houvesse homem da lei, quem havia relatado a presença de um vampiro aqui para a Society? Como algum desses caipiras boquiabertos sabia como enviar uma mensagem a Society?
Uma mão pousou em seu ombro, dedos finos que se curvaram até a clavícula. Ele não percebeu que Wuxian se movia atrás dele, um terrível passo em falso, preocupado como estava com o aparente estado sem lei de Cress Haven.
— Assim que o agente funerário remover o corpo, os habitantes da cidade elegerão alguém para investigar, — Wuxian explicou em voz baixa.
Wangji  olhou para a multidão reunida, que claramente não tinha o bom senso de procurar segurança. Eles ficaram boquiabertos e ofegantes, mas claramente não queriam ter nada a ver com erradicar tal violência. Ele tinha visto esse tipo de reação em Boston, espectadores perversos atraídos como moscas para um corpo, dispostos a voar e zumbir, mas totalmente inúteis. Havia algo quase cômico em seu descontentamento e inesperado no que ele achava que seria uma população tão unida.
— Muito bom que farão isso —, disse Wangji .
— Oh, não seja tão depreciativo. Você ficaria surpreso com o que um simples cavalheiro do campo pode realizar com a motivação certa —, disse Wuxian.
Wangji  ergueu os olhos para o homem, surpreso com a postura solene de sua mandíbula lisa. Um fogo ardia no olhar de Wuxian. O que quer que os outros pensassem sobre esse assunto, claramente o perturbou.
— O que você acha que fez isso, senhor? — Wangji  perguntou a ele. Sua mente vagou de volta para seu encontro na estrada, a presença invisível à espreita na floresta que fez os animais selvagens fugirem de seus ninhos e tocas. Poderia aquela... coisa ... ser a culpada?Wuxian se concentrou nele, sua expressão ilegível.
— Você não quer dizer quem fez isso?
Wangji  corou, muito consciente da multidão ao redor deles para expressar seus pensamentos honestos sobre o assunto, mesmo que ele pensasse, esperasse que Wuxian ouviria.
— Você está certo, senhor.
— Eu digo, que linda jovem, embora ela seja uma ruína medonha agora —, observou Nie Mingjue com toda a sensibilidade de uma matrona fofoqueira.
— Sabemos quem ela era?
Os clientes reunidos ficaram em silêncio e se acomodaram em torno dos restos mortais da garota, alguns dos quais trouxeram lanternas para ver melhor o corpo.
Um homem deu um passo à frente, seu rosto quase todo escondido por uma enorme barba desgrenhada, o topo de suas bochechas corado enquanto ele esfregava a nuca.
— Pode ser Jiang Yanli.
— A filha do pastor Jiang? — um dos outros gaguejou. — O que ela estava fazendo a esta hora da noite?
Os dedos finos de Wuxian se fecharam em punhos, pressionados com força contra suas coxas. Wangji  teria perdido a reação se não estivesse no nível dos olhos da multidão. Um gesto sutil, que não deveria ser visto, que sugeria uma possível conexão, embora a expressão de Wuxian permanecesse fechada.
Os pensamentos de Wangji  começaram a girar, buscando conexões, por razões que a jovem estaria no escuro. Uma linda garota começando a florescer com feminilidade, vagando pelas ruas para encontrar um amante? Talvez um encontro não estivesse fora de questão. Wangji  conhecia bastante uma filha de pastor que se sentia um pouco presa às regras da casa. Exceto... a teoria não se encaixava com ele.
Wangji  olhou para o rosto da jovem, mal saído da juventude. Ele duvidava que ela tivesse atingido a idade de cortejar, embora ela fosse adorável, uma vez que ele pudesse ver além dos detalhes de sua morte. Ela parecia... isca.
Um estalo de gelo percorreu suas veias. Ele se sacudiu enquanto as memórias enterradas se agitavam, determinado a descarrilar aquela linha de pensamento antes que ela deixasse a estação. Havia milhas e anos entre Wangji  e aquele capítulo de sua vida e, além disso, lembrou a si mesmo, isso não era obra de um vampiro.
A voz da Sra. Meech cortou a multidão que murmurava, a angústia clara em seu rosto.
— É isso. Estou fechando cedo.
Wangji  se levantou abruptamente, suas perspectivas de um quarto rapidamente escorregando por entre os dedos.
— Com licença, senhora? Oi, senhora?
A multidão se virou em conjunto, uma massa sólida de pessoas que bloqueou seu caminho até que ele tinha certeza de que uma conspiração estava em andamento para mantê-lo exposto e desequilibrado. Wangji  teceu e abriu caminho através da multidão dispersa, a garota morta ainda fortemente em sua mente quando ele ficou cara a cara com um bar trancado. Ele bateu na porta na vã esperança de que a Sra. Meech abrisse para ele e permitisse que ele trocasse por um quarto, ou pelo menos permitisse que ele recuperasse sua valise. Mas o bar permaneceu fechado e as ruas esvaziaram em poucos minutos. As primeiras luzes da rua começam a se apagar, e Wangji  percebeu o quanto estava exposto.
— Droga —, ele amaldiçoou baixinho. Como esta noite foi tão desastrosamente errada?
Ele pensou em acampar na varanda do bar durante a noite com o fantasma de Jiang Yanli e o monstro que a matou como companhia. Ele enfiou a mão no bolso, traçando a forma do objeto que ele arrancou do sangue da garota morta, liso e muito afiado.
— Mestre Lan, nos encontramos novamente.
Wangji  se virou. Seu coração deu um pulo no peito.
— Eu exijo que você faça barulho quando se aproximar, senhor. — Ele não tinha certeza se a presença de Wuxian o enchia de alívio ou suspeita, embora estivesse grato pelo homem carregar uma lanterna.
— Por que você não voltou para a segurança de sua casa, senhor? Há um assassino à solta.
Wuxian inclinou a cabeça, o cabelo comprido caindo de seu ombro. As mechas negras tinham se soltado da gravata de couro, os cachos sedosos emolduravam seu rosto de uma forma que o fazia parecer ainda mais gracioso. No jogo de sombras e no brilho dourado de sua lanterna, ele parecia absolutamente angelical, o que perturbou Wangji  em um nível profundo na alma, por razões que ele ainda não podia imaginar.
— Eu queria ver se você encontrou um porto seguro para a noite. — Wuxian lançou um olhar de desaprovação sobre a cabeça de Wangji  para o bar fechado. — Mas como você está aparentemente à deriva esta noite, você consideraria ficar no meu quarto de hóspedes?
Wangji  hesitou. Seu pulso acelerou com o convite. Era verdade que ele precisava de aliados em Cress Haven, e Wuxian era sua aposta mais segura até agora, mas também não havia descartado inteiramente o surpreendente cavalheiro do reino da suspeita.
Ele olhou atentamente através da escuridão, dissecando cada uma das características de Wuxian para possíveis pistas. Embora no lado mais pálido, grande parte da população estava tão ao norte, e Wuxian tinha a compleição saudável e robusta de um homem com acesso constante ao ar fresco, não a palidez de um demônio. Ele era bonito o suficiente para deixar Wangji  desconfortável, mas a beleza não era a característica definidora dos mortos-vivos. Isso era mito. Seu olhar se desviou sorrateiramente para as unhas do homem.
A Society o chamava de “dedos de cadáver”, a descoloração provocada pela má circulação até parecer hematoma sob as unhas, mas os de Wuxian eram de um rosa saudável. Pelo menos parecia assim à luz fraca da lanterna.
Wangji  mordeu o interior de sua bochecha. Ele confiava em sua visão na escuridão?
Se Wuxian fosse o vampiro, ele não teria aproveitado a oportunidade para atacar Wangji  agora? Eles estavam sozinhos e, depois de encontrar um corpo devastado, ele duvidou que os habitantes da cidade estivessem dispostos a se aventurar ao som de angústia. Resolvido, ele deu um passo à frente para aceitar a oferta e percebeu que sua valise de viagem ainda estava dentro do bar.
— Não tenho nada que caiba em um jovem do seu tamanho, mas posso mandar buscar suas coisas pela manhã —, disse Wuxian, interpretando claramente sua angústia.
— Obrigado por sua gentileza —disse Wangji .
Wuxian ergueu a mão.
— De jeito nenhum. Isso não é caridade.
A sobrancelha de Wangji  se ergueu em surpresa.
— Não é? — Mais uma vez, uma resposta brilhante.
Wuxian ajustou a lanterna, enfiando a mão livre no bolso, fora da vista de Wangji .
— Eu gostaria de contratá-lo.
Wangji  piscou.
— Contratar-me?
Wuxian revirou os olhos, claramente farto da natureza repetitiva da conversa. — Eu me ofereci para investigar o assassinato da infeliz senhorita Jiang. Gostaria de contratar seus serviços em troca de hospedagem e alimentação.
Voluntariou-se? Quando? Como? Com quem?
Suas palavras registradas.
— Meus serviços? — Wangji  ficou tenso, um alarme interno tocando que ele se expôs mais do que ele percebeu.
— Oh, não seja tímido, Mestre Lan. O que você tem no bolso? — Wuxian começou a rodeá-lo, suas botas arrastando-se pela poeira da estrada, a luz de sua lanterna se derramando sobre seus pés. Foi uma leitura lenta, uma medição. Isso Wangji  podia sentir com o peso do olhar de Wuxian. Em uma voz que fez Wangji  estremecer enquanto agitava seu sangue, Wuxian disse:
— Eu sei que você pegou algo, que aquele Mingjue desajeitado provavelmente teria deixado de lado. Mostre-me.
A hesitação de Wangji  desta vez teve um motivo muito diferente. Confrontado dessa maneira, não havia tempo para obter uma avaliação completa do homem, e Wangji  ficou cada vez mais desequilibrado desde sua chegada a Cress Haven. A necessidade de um aliado valia o risco, embora ele tivesse que ser cuidadoso ao lidar com o Wuxian muito observador.
Ele tirou o lenço ensanguentado do bolso e desdobrou cuidadosamente o pano. O objeto estava no meio de sua palma, liso e afiado, bebendo nas sombras da noite.
Era uma garra, negra como ébano e fria como o gelo do inverno.

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