Demônios

65 6 3
                                    

Jamais pensei que passaria tanto nervoso quanto na época que precisei ouvir Khaotung suplicando à Mix para que deixasse que ele me visse. Sempre achei que havia sido um delírio da minha cabeça enquanto eu, mesmo depois de transformado, ainda resistia a sede de sangue. Mas depois descobri que aquilo realmente havia acontecido.

Khaotung morreu perto de mim. Mais perto do que eu imaginei por todos esses séculos. E foi enterrado nas terras onde os meus ancestrais também haviam sido. E, anos mais tarde, onde meus pais também foram. Mesmo sem saber que os gritos de Khaotung naquelas noites de agonia - enquanto eu sofria de saudade e sede - eram reais, no fundo, eu sempre senti como se eles fossem, porque doía no mais profundo da minha alma o seu desespero. Mesmo em meio à toda a dor que eu sentia, nada era pior do que saber que ele estava sofrendo. Talvez por isso que Off achou que seria melhor dar um fim naquilo de uma vez por todas.

Talvez, Off estivesse certo naquela época. Nunca saberei dizer porque jamais aceitaria concordar com a morte de alguém que eu amo. Principalmente esse alguém sendo Khaotung.

No entanto, naquela noite, eu pude sentir algo muito pior do que séculos atrás. Eu pude sentir fisicamente a dor de Khaotung em mim. Pude ouvir os seus gritos e um som perturbador junto da ardência de sua pele sendo cortada. Não sabia como eu conseguia ouvir e sentir aquilo, mas era de arrepiar cada terminação nervosa do meu corpo. Eu mal conseguia respirar. Não conseguia sequer gritar por ele. Eu apenas ouvia seus urros de desespero enquanto podia sentir em mim a dor que ele estava sentindo. Eu não podia ver. E não conseguia perguntar o que estava acontecendo. Simplesmente fiquei em choque. Eu só desejava que, pelo menos, eu conseguisse tomar um pouco da sua dor pra mim. Desejava que Khaotung soubesse que eu estava ali e que, de alguma forma, aquilo o tranquilizasse.

Mas eu sabia que estava apenas me iludindo. Tentando achar um fio de esperança no meio de todo aquele desespero.

E, de repente tudo parou. Eu só podia ouvir o barulho muito distante de um coração batendo. E ele batia cada vez mais fraco. Minha respiração, antes presa, agora era forçada e ofegante. O nó em minha garganta era tão forte que dificultava até mesmo o meu raciocínio. E eu não queria acreditar que aquilo estava acontecendo. Minha voz havia me abandonado de vez. Meus olhos sequer lacrimejavam mais. Minhas mãos tremiam e suavam tanto que eu precisei fechá-las em punho pra tentar ter um pouco de firmeza, já que meus joelhos tinham cedido há muito.

Eu queria gritar por ele. Queria correr em sua direção. Queria que ele, de alguma forma, soubesse que eu estava ali, que não iria a lugar nenhum e que ele fosse forte e aguentasse mais um pouco. Mas, até onde um corpo mortal conseguiria aguentar tamanho sofrimento e dor? Até que ponto Khaotung conseguiria se manter são e... vivo? Nem sempre o amor é suficiente pra nos salvar de determinadas situações. Especialmente se quem amamos não está ali pra nos dar suporte.

Os batimentos cardíacos de Khaotung ficavam cada vez mais lentos e baixos. Àquela altura, eu apenas suplicava para que aquilo significasse que eu estava acordando. E que tudo não havia passado de um pesadelo.

Senti alguém segurando minha mão e aquilo fez com que a tremedeira parasse. Um calor me invadiu e, por alguns instantes, minha dor e desespero deram uma trégua.

Então eu acordei.

Me forcei a abrir os olhos e olhei em volta, notando que eu estava sozinho no meu quarto. Ergui minha mão esquerda, que ainda estava morna com a sensação de antes e, ao ver a cicatriz em meu pulso, meu queixo tremeu e as lágrimas inundaram meus olhos. Me virei de lado e encolhi todo o meu corpo em posição fetal enquanto abraçava meu pulso esquerdo e chorava contra o meu travesseiro.

Travesseiro este que, há dez dias atrás, acomodava a cabeça de Khaotung ao lado da minha na nossa cama.

Agora, sequer seu cheiro estava lá e aquilo aumentou ainda mais a minha sensação de perda.

In a different life - FirstKhaotungOnde histórias criam vida. Descubra agora