Capítulo 32 - Quebre a Maldita Porta.

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Rodrigo Andrelino

03.04.2024

Estava chovendo na Chapada do Araripe e as estradas logo ficariam inacessíveis, pelo menos a parte em que a chácara da minha família ficava. Era meu refúgio desde pequeno. Lembrava de brincar de ser fada brigando com a Cuca e em como eu sempre tentava adotar uma piaba do riacho, mas sempre acabava em luto. Hoje eu acho um pouco engraçado, mas na época eu sempre chorava, até o dia seguinte, onde esse ciclo se repetiu por longos anos, até quando entendi a relação de todos os seres vivos com o oxigênio. 

Tanta coisa aconteceu em minha vida desde que meu projeto de vingança contra os Martins veio à tona. Eu não pretendia estampar meu rosto, sendo forçado a adotar o pseudônimo que a mídia criou para mim. Soldadinho Franco.

Passei por um grande período de tempo tentado a me revelar a mídia só pra mudar o nome por achá-lo ridículo, isso até ver um vídeo de uma adolescente revelando, enquanto se montava de drag, a origem do nome. Soldadinho vinha do passarinho que era praticamente o modelo oficial do Cariri, o Soldadinho do Araripe e o Franco vinha do sobrenome da Marielle Franco. Daquele momento em diante eu não me importei tanto assim como a mídia se referia a mim.

Entrei no Spotify pelo notebook e troquei a playlist da Adele por “Tropicana” do saudoso Alceu Valença. O frio era propício para o sentimentalismo vago, mas o cheiro de anunciação de mais uma chuva daquelas era digna de uma canção que me fizesse flutuar, ronronar dentro do meu próprio terno de carne, uma música que podia tocar minha alma sem muito esforço.

Coloquei o notebook na mesa improvisada próximo a janela aberta, as paredes da casa de taipa pintadas de cal ainda úmidas da noite passada. Sentia o cheiro do mormaço e peguei o xircão branco com chá de capim santo, bolacha Cream cracker e um pouco de margarina. Era reconfortante sentir o calor do chá em minha palma esquerda, logo tratei de segurar o xircão com ambas as mãos. Precisava de uma pausa. Enquanto terminava de comer um punhado de bolachas a música passou para a seguinte “Flor de Tangerina” do mesmo cantor. Passou-se tanto tempo que começou a tocar uma outra playlist “Batendo na Porta do Céu” do Zé Ramalho… 

Desabei em lágrimas por lembrar do meu pai. Eu ainda sentia uma falta latente.

•••

A calçada alta da casa de vó estava cheia dos meus primos favoritos. Minha irmã estava sentada no colo de vovó e mãe tava jogando dominó-de-osso com as cunhadas e um tio meu, o caçula. O céu estava nublado, fim de tarde e o vento estava mais agradável do que todos os outros dias do verão.

Painho tava só com um short da Cyclone e uma kenner, cordão de prata com um crucifixo enorme pendendo no pescoço fino. A caixinha ao lado dele tocava algumas músicas, desde Edson Gomes até Belchior.

Quando uma música estranha começou a tocar, fiquei em alerta, ajeitando a postura de criança buchuda que não para quieta. 

Enrruguei o cenho pra cara de painho, olhos fechados e respiração lenta. Ele estava tão concentrado na música que eu até estranhei, ele nunca abaixava a guarda, ainda mais tando numa área que era inimiga da facção que ele era vinculado.

Aprendi sobre como o mundo podia ser cruel com seis anos. Aos sete eu já sabia o estrago que um trinta e oito podia causar.

ㅡ Que música é essa, pai?

Um longo suspiro.

ㅡ Essa é a música que eu escutei quando sua avó morreu, filho.

ㅡ Mas a vovó tá aqui, oh. ㅡ Apontei pra senhora de cabelos brancas e peitos maiores do que melões.

ㅡ Mas essa aí é minha sogra, filho. ㅡ Sorriu. Sempre sabia quando as pessoas a minha volta estavam… Melancólicas, por mais que não quisesse, parecia ser algo ligado a mim. ㅡ O pai já fez muita coisa filho! A minha mãe implorou pra que eu deixasse umas questões aí de lado, sabe? ㅡ sorriu mais uma vez, os lábios tremiam e os olhos brilhavam. ㅡ Eu prometi que ia largar a vida que sua avó não gostava… Eu quebrei essa promessa e ela morreu sem saber que eu tinha tentado.

ㅡ Ela sabe. ㅡ Disse de repente.

ㅡ Hum?

Coloquei minha mão sobre a coxa do meu pai, os olhos marejados me mirando com muita confusão. Eu nunca contei a ele, não tive a chance.

ㅡ Tem uma mulher sorrindo atrás do senhor.

Ele se virou, não viu nada, porque não era uma mulher, era sua mãe. Eu não sabia quem ela era, mas vinha até mim em sonhos em dias que painho não voltava pra casa. Sentia os dedos mexendo em meus cabelos até que pegava no sono.

ㅡ Vem cá.

Me deixei ser embalado no abraço, sentido algo molhar meu peito sem camisa. Era as lágrimas de um menino… No corpo de um adulto. Ele tremia contra meu pequeno corpo. Eu nunca mais vi minha vózinha.

•••

Era impossível escutar essa música sem me lembrar do meu pai, do acidente, dos perrengues, de como Pedro Ícaro podia me machucar mesmo sem saber. Os Martins precisavam pagar por todos seus malditos pecados. Meu pai poderia estar em paz com minha avó… Já eu, isso era uma outra história.

Pausei a música e decidi mexer um pouco no celular para distrair meu coração quebrado e a mente a mil. Meu santo não ia muito com minha cara. Minha deusa! 

A primeira foto que vi no feed foi a de Pedro Ícaro, ele estava sentado em alguma praia de Portugal com o bronzeado em dias e os cabelos maiores, cachos bagunçados cobrindo as orelhas. O sorriso era mínimo, sem dentes, mas se mostrava… Queria usar o adjetivo feliz, mas eu senti meu peito arder e a raiva me dominou… O covarde parecia preenchido; diferentemente de mim, que ainda arquejava pela pelo vazio que ainda me perseguia.

Me sentia vazio, como se tivesse visto a personificação de um futuro melhor, de um amor mais leve morrer bem diante dos meus olhos, me senti como Capitu provavelmente se sentiu na presença do cadáver de Escobar.

Havia se passado tantos meses e mesmo assim ainda doía. Amar era tão viciante quanto crack, mas a abstinência era muito mais severa, não maltratava a carne, mas a alma, o espírito e a mais profunda lacuna do âmago. Eu me sentia tão pequeno e esse sentimento me consumia enquanto meus dedos deslizavam pelo teclado do notebook, estava finalizando um trabalho final e logo precisaria entregá-lo ao meu professor de forma presencial. O verme de sorriso ladino e bafo de cigarro parecia não se contentar com material digital. Ainda lembrava da resposta do fi duma égua de quando eu o questionei sobre ele não aceitar material em PDF, o maldito só disse que na época dele as pessoas sabiam dar valor a escrita por ser mais de dificil, sem ter a tecnologia facilitando tudo, a todo instante.

Me considerava um escritor desleixado e relaxado, e mesmo assim sabia muito bem dar valor à escrita. Me sentia ofendido sempre que me lembrava da resposta porca e mal pensada do professor mais medíocre que eu tive o imenso desprazer de ter como tutor. Eu precisava tirar leite de pedra em suas aulas entediantes e monótonas, ou parafraseando; leite em pó, porque o maldito era tão infeliz ao ponto de se manter vinculado à instituição, mesmo depois de tantas décadas, ministrando aulas só para desmotivar alunos do curso, se eu tivesse que tirar leite de seus devaneios sem sentido, com toda certeza iria sair leite em pó, por conta do maldito que mais parecia um dinossauro.

Por sorte nunca mais precisaria passar por seus inconvenientes comentários após a AV2 que se aproximava com muita velocidade

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