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  E então ele disse "mas você não entende!"  Uma mulher de visual despojado clamou para uma amiga ao seu lado.
 Óbvio que eu não entendo, você nunca me diz nada!  Estava visivelmente furiosa. — Depois ele me falou "Mais tarde eu passo aí para a gente conversar."
 E o que você disse?  A amiga indagou.
 Eu disse beleza!  Rastejou sua língua na palavra beleza, como se estivesse prestes a adicionar mais alguma coisa, — Mas eu logo disse a ele, "Na verdade nem venha mais hoje que eu vou é sair!
As duas riram ao mesmo tempo enquanto estavam esperando no ponto.
— Ele logo perguntou "Vai para onde?", Vou ali ajeitar minha vida  acrescentou.
A outra mulher que estava a acompanhar a história que sua amiga compartilhou, também decidiu relatar uma experiência recente.

 Esses homens não valem de nada né? — Deu um sorriso sarcástico e singelo, apesar de parecer realmente acreditar no que disse.
 Um dia desses o meu marido estava descascando um alho na cozinha, só que estava fazendo de maneira toda errada! — A amiga continuou — Quando eu vi, logo peguei da mão dele e mostrei como que faz.
A outra mulher, menos raivosa agora, não conseguiu conter o riso ao imaginar sua amiga tirando o alho de grosso modo da mão do seu marido, e perguntou como que ele tinha reagido.
 Ele disse, "nossa mó, como você é grossa" e saiu da cozinha.
No mesmo momento um ônibus amarelinho apareceu distante em vista. A maioria se ergueu, e eu também, mas as duas continuaram ali, imunes, procurando mais conversas para jogar fora.
E conversaram bastante.

Passando pela catraca do transporte, uma moça se sentou em um dos assentos do ônibus, pega o celular da bolsa, vai até um de seus contatos e começa a enviar um áudio.
— Aí amiga, eu realmente tô real desmotivada, sabe? Hoje a Sandra disse que eu falo demais! Vê se pode isso? Quase mandei ela tomar no...
Certamente o dia dela não estava indo bem. Visivelmente deprimida, as mensagens enviadas para o contato "Dupla Caótica ❤️" eram de frustrações íntimas da sua vida profissional: Sua chefe que não parava de pegar no seu pé, do estágio que era menos do que bom, e das roupas fornecidas que poderiam apenas caber em um bebê de dois meses. Logo adiante, deitou sua cabeça ao lado, esperando sua amiga responder suas colunas de mensagens enviadas. Não muito tempo depois, uma notificação. Pegou seu celular com a ideia de que sua amiga iria te confortar, já que era um momento tão difícil na sua vida, porém ao abrir apenas uma única mensagem. Com tudo que ela podia ter escrito, era apenas um: "Viu"
Nada mais.
Tenho certeza que conversam sobre isso bastante.
E conversaram bastante.


O ônibus finalmente chegou no final de linha e aqueles que ainda não tivera descido, fizeram-no neste. No caminho para minha casa, em uma rua de becos com lojas, havia umas senhoras em cadeiras de plástico comentando cada coisa que viam na beira da rua.
— Olha isso! — Uma das senhoras apontou para uma menina que passava na rua — Nunca deixaria uma filha minha se vestir desse jeito, principalmente nesse horário tão tarde!  exclamou.
—  Esse mundo está perdido mesmo, se fosse em meu tempo, era palmatória na certa!  A outra senhora disse — Mas venha cá, você não disse que não tinha filha mulher?
 Sim, e é exatamente por este motivo  elas riram.
E conversaram bastante.


Passando por elas, caminhei por uma ladeira sem asfalto, até parar em frente a minha casa. Eu que vivendo essas micro ocorrências de vidas de outras pessoas, me distanciando de meus contratempos, vivendo vidas além da minha. Vivendo todas, menos a própria.
Peguei minhas chaves, abri a porta da casa, coloquei minhas memórias em cima do sofá, fechei as cortinas da casa, apaguei as luzes do quarto e deitei na cama. Naquele final de dia, desejei que no próximo, além de mais conversas, um amigo.
Um amigo com que eu consiga conversar.
Então eu conversei comigo mesmo.
E conversaram bastante.

Enquanto eu lhe procuro e não te encontro.Onde histórias criam vida. Descubra agora