35. duas pra cá, duas pra lá e nós aqui

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— Você lembra daquele meu tio manco? — Nayeon perguntou, rodopiando seu bubble tea de kiwi com um canudinho de metal. Sana estava do lado dela partilhando comida e aquele banco de madeira que ficava no segundo andar de uma cafeteria aconchegante aos arredores da universidade. Por conta da temática mais rústica, tinham várias plantinhas distribuídas pelo ambiente e uma árvore passando no meio. As luzes eram amarelas, o chão de pedra, as mesas retangulares, o cardápio rabiscado à giz numa pequena lousa preta. Nayeon esperou que Sana assentisse para continuar. Dito e feito, balançou a cabeça garfando um pedaço de croissant e levando à boca. — Então... Ele é meu padrinho. Irmão mais velho da minha mãe.

— Aah, acho que você já comentou uma vez.

— Pois é... Antes dele virar o ranzinza de hoje e dia, ele teve planos, uma moto e uma noiva. Há mais de vinte anos atrás quando a gente nem sonhava em existir.

— Certo.

— Ele sempre me dizia pra evitar subir no veículo que fosse, se possível. Especialmente motos porque... Eram as mais perigosas. "Fora os capacetes? Não tem proteção nenhuma pra quem sobe num troço desses! Precisa de equilíbrio, o triplo de atenção e muita, muita sorte." Enfim, ele repetia isso e me levava a pé pros lugares.

— Estranho...

— É, também achava. Eu nunca entendi por que ele insistia em dizer aquilo. Mas, meus pais falavam que certas coisas eu só entenderia quando crescesse... Que não era pra eu me apavorar com o completo repúdio que o tio Minjun nutria pelos meios de transporte. Que ele tinha suas razões, claro, mas que não era uma verdade absoluta pra levar pra vida, então eu não precisava ter medo de nada... Só cuidado. Naturalmente, eu imaginei que ele ficou manco em algum acidente de trânsito e que por isso era do jeito que era, mas não era só isso. Tinha mais. — Ela suspirou. — Xeretando a casa dele um dia, eu fiquei sabendo da noiva dele. Achei fotos, cartas, roupas, os convites de casamento, um diário e... Notícias de jornal sobre um acidente de moto envolvendo um casal e um ônibus.

— Meu deus... A noiva dele--

— Sim. Eu fiquei chocada na época, mas guardei tudo pra mim e segui como se nunca tivesse visto nada daquilo. Eis que um dia, voltando pra casa no 9° ano, eu parei no cruzamento e vi um acidente de moto acontecer bem na m-minha frente. — Os olhos da Im começaram a lacrimejar. — Só que eu travei, não consegui ligar pra emergência, nem memorizar a placa do carro que fugiu dali quase intacto... Eu não parava de olhar pra todo aquele sangue, pensando em como a-aquele homem foi arremessado longe feito nada. Ele parecia o cara mais confiante do mundo, mas bastou segundos pra estar inconsciente no chão, todo quebrado. E tudo o que o meu tio dizia começou a ecoar na minha cabeça.

Sana envolveu a mão de Nayeon à sua, culpada por fazê-la tocar naquela ferida. Mas, antes que a japonesa pudesse dizer algo para confortá-la, a mais velha prosseguiu, contando-a mais detalhes do ocorrido. E Sana ali ficou, ouvindo pacientemente.

— N-não sei quanto tempo levou, mas uma mulher apareceu correndo, chamou uma ambulância, veio me acudir e me acompanhou até em casa depois que levaram o homem dali. Não faço a menor ideia do que aconteceu com ele... Se sobreviveu ou não. Só sei que eu me senti tão mal e culpada por não ter conseguido mexer um músculo diante daquilo que fiquei revivendo a mesma cena de novo e de novo, refletindo sobre o peso que aquilo teve em mim e eu nem sequer conhecia o homem, imagina se eu conhecesse? Se fosse um amigo? Se fosse uma namorada? Eu precisava desesperadamente conversar com alguém e acabei procurando meu padrinho, admiti toda a história que tinha descoberto naquele dia xeretando a casa dele. Coloquei tudo pra fora.

Ela encheu os pulmões de ar, sua palma suando contra os dedos da outra.

— Eu queria ter contado pra você... Mas, o tio Minjun foi o único pra quem eu me abri sobre o acidente. Senti que só ele me entenderia de verdade e tivemos uma conversa longa, sobre tudo. Ele me acalmou e eu finalmente entendi porque ele era tão amargurado. Fiquei sabendo que ele passou duas semanas em coma depois do acidente com a noiva... E quando acordou? Descobriu que ela tinha falecido. Me disse que a dor de ouvir aquilo foi monstruosa, que seus ferimentos não eram nada perto e que tentou tirar a própria vida quando teve alta no hospital. Então, meus avós e minha mãe o internaram à força numa clínica de reabilitação. Ele amava motos, a noiva dele também e acabou assim. Sonhos, planos, tudo resumido a esse pesadelo.

Namorada de Mentirinha - SaiDaOnde histórias criam vida. Descubra agora