CAPÍTULO 46

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A caminhada até a sala onde Azriel a esperava foi muito mais curta do que ela gostaria. Ainda assim, ela tentou demonstrar um pouquinho da confiança que estava longe de sentir.

Com o queixo erguido e ombros retos, ela ultrapassou um par de enormes portas de madeira escura.

Um tapete cobria quase todo o chão. Poltronas de couro decoravam o ambiente junto a uma mesa no fundo da sala. Havia também algumas prateleiras de livros.

O lugar era bem semelhante ao escritório que esteve na última vez na casa do Grão-Senhor -o que aumentava suas suspeitas de esse ser o local para o qual a trouxeram-, mas era maior e mais espaçoso. Uma sala de visitas, talvez...

Azriel estava alguns passos a frente dela, sentado com as costas eretas e um semblante vazio, em uma das poltronas.

Eles se encararam por um breve momento antes de ele desviar o olhar. Seu coração galopava em seu peito por motivos distintos e ela tinha certeza de que ele podia ouvir as batidas muito bem.

Não sabia o que pensar de sua recusa em olhá-la, então calou-se e caminhou até a poltrona em frente a dele.

Minutos rasos demais se passaram antes de Azriel falar.

- Não tenho certeza de como começar. -ele ainda não olhava para ela.

Sem achar que ele esperava uma resposta dela a feérica esperou. As mãos cruzadas sobre o colo e os ombros ainda teimosamente erguidos.

- Não sei porquê faz isso - confessou ele.

- "Isso" o quê? - perguntou legitimamente confusa.

- Continua escondendo coisas. Coisas demais. Eu não sei nada sobre você. Nada.

- Não acho que isso seja justo -rebateu ela- E o que é que eu sei sobre você? O que você já me contou? E mais importante: por que é que eu deveria lhe contar alguma coisa sobre mim?

-Porque se você quiser continuar livre nesta Corte é melhor parar de esconder as coisas - respondeu ele, finalmente a encarando. O castanho de seus olhos distantes do que ela havia acostumado a ver.

Corações podiam desmaiar? Porque ela tinha certeza que o seu havia acabado de ficar desacordado, errando uma, duas, três batidas.

- O que é isso? - ela odiou como sua voz soou fraca com essa pergunta- É pra isso que estou aqui? Vai finalmente começar seu interrogatório, Mestre Espião?

- Tenho escolha?

-Eu tenho?

- Você teve várias chances de escolher. Inúmeras oportunidades de me contar a verdade, mas preferiu ficar em silêncio, preferiu ser covarde e esconder as coisas, o que só fez piorar todas as desconfianças que poderíamos ter sobre você. Como podemos confiar que não é realmente culpada pelas coisas que te acusam?

- Não pareceu se importar com essas coisas quando me beijou horas atrás. - Ou talvez fossem dias... ela não podia se importar menos.

Sua acusação parecia ter tido algum efeito no macho a sua frente, que mais uma vez desviou o olhar. A mandíbula visivelmente tensa.

A frustração parecia queimar em seu peito. Um gosto amargo crescendo junto a ela e subindo em direção a sua garganta, mas - sobrepujando todas as emoções em seu peito- as palavras saltavam e davam cambalhotas implorando para que as dissesse. Implorando para que ao menos uma vez dissesse a verdade.

- Eu só preciso que diga a verdade, Lyra - disse ele como um reflexo de seus pensamentos.

Ela sabia que deveria dizer. Sabia que talvez fosse preciso, entretanto, quando abriu a boca, disposta a arriscar tudo, as palavras se embaralharam sobre sua língua e derreteram com um gosto azedo de medo e vergonha.

Azriel suspirou quando ela só sacudiu a cabeça em completo silêncio.

- Por que? - ele perguntou - me diga ao menos por que?

Mas a única resposta que pôde dar foi:

-Sinto muito.

Veio como um piscar. Uma pequena pinta de escuridão em sua mente que veio e partiu tão rápido quanto uma flecha.

Azriel arregalou os olhos e disparou em sua direção.

Um rugido cruel e tenebroso partiu o ar segundos  antes de uma janela se estilhaçar e então, ela estava rolando pela sala. Sua cabeça acertou algo no meio do trajeto e agora tudo parecia se mover com lentidão e um apito agudo insistia em soar dentro dela. Garras afiadas cortando e esmagando seus braços junto ao corpo. Dentes pontiagudos e grotescos estalando logo acima de seu rosto.

Azriel gritou. As joias azuis em seu traje brilharam com força. Raiva manchava sua voz e suas feições como ela nunca havia visto, mas a criatura não lhe poupou nem mesmo um olhar.

Um segundo borrão atravessou a janela indo diretamente ao Mestre Espião. Ela tentou gritar, mas não sabia se obteve sucesso na empreitada. Tentou se mover e seu corpo não obedeceu.

Sem nenhuma resistência digna de nota ela assistiu a segunda criatura demoníaca derrubar Azriel e prendê-lo sob suas garras.

Um espelho de sua própria situação.

Depois de alguns grunhidos e resfolegares as duas coisas decidiram ser o bastante para partir. Com um sacudir das asas negras se puseram no ar através da janela estilhaçada.

Ao longe, na cidade, mais caos se seguia. Criaturas gêmeas as que tão facilmente os dominaram sobrevoavam Velaris. Pessoas gritavam e corriam nas ruas.

Em um canto, um escudo vermelho crescia, mantendo as criaturas longe por algum tempo. Mais ao longe, ela achava ter visto águias e lobos -tão transparentes quanto água- ajudando alguns feéricos.

Atrás deles uma nuvem de escuridão inundava cada casa e estabelecimento.

Nenhum deles, no entanto, foi capaz de impedir seus captores. As criaturas seguiram seu trajeto como se não houvesse nada ao redor. Aos poucos suas forças iam sumindo.

Ela viu o azul infinito do mar sob eles. Assistiu encostas verdes e estéreis dispararem abaixo e então sua pálpebras cansaram, sua cabeça tombou. Eles conseguiram.





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