01: O cara da tornozeleira.

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Serena

Acordo assustada. Tenho acordado toda noite com pesadelos. A brisa fria entra pela janela, em plena madrugada é difícil pensar na hora exata. Tive uma briga feia com a minha irmã no jantar, ela trouxe o namorado novo para apresentar, e decidiu sozinha fazer a nossa festa de aniversário em dias diferentes, o meu um mês depois. Ela sempre teve tudo, um namorado bonito, um cabelo liso natural, sempre rodeada de amigas.

Levanto para fechar a janela, sacudindo a cabeça para espantar esses pensamentos. Me assusto quando vejo um cara parado na calçada da rua encarando a minha janela. Usa capuz e uma banda trampando metade do rosto. Ele acena e faz um gesto como se estivesse mandando um beijo para mim. Fecho a janela e puxo a cortina. Em Santaluz tem muita gente doida, algumas mais do que outras.

Passo o resto da noite acordada pensando nesse estranho. Estou de férias do meu cursinho de desenho então não tenho nada para fazer. Acabo tirando um cochilo a tarde toda. O som da buzina familiar soa lá embaixo. Olho pela janela. Lena acena para mim. O sol está se pondo. Pego um casaco de malha beje, visto apressada e desço as escadas primeiro, passo na portaria e vou pra rua.

A loira abaixa o óculos de coração com lente rosa quando me vê. Às vezes ela vem, me arrastar para algum lugar para conversar e provavelmente beber todas. A Lena não muda. Abro a porta do seu jipe verde, sento no banco do passageiro. Ela é uma amiga que fiz no cursinho.

— Pra onde vamos?

— É surpresa! — Da aquele sorriso de quem sabe do que eu preciso para ficar melhor.

Nesse momento, eu so quero uma coisa, so uma coisa. Mas não posso me dar o luxo de querer mais. Enquanto isso eu sorriu e guardo a minha dor so pra mim. Olho para a janela. Passamos pelas lojas, casas, predios, algumas poucas arvores. Ponho o cinto quando me dou conta que não estou com ele.

— Lena, fala dos seus problemas pro meus parecerem piada! — Peço arrancando risadas dela.

— Ainda nem bebemos nada.

— Acho que ficar bêbada não vai mudar nada, vou continuar pensando do mesmo jeito. — Resmungo.

— A sua irmã de novo? — Olha de mim para a estrada. — Sabe o que eu penso sobre isso. Você é bem melhor que ela!

Lena é a minha amiga, e só os meus amigos sabem como eu sou chata e mesmo assim gostam de mim, mas no caso só tenho uma amiga. Tento mudar de assunto falando do seu ficante.

— E o seu peguete?

— Ah, aquele traste me pediu um tempo, tipo, que tipo de relacionamento ele acha que a gente tem? Eu fingi aceitar, depois terminei por mensagem! — A Lena não se importa muito com as pessoas, ela é bem desapegada e vingativa. — Agora vamos falar de coisa boa. O seu aniversário tá logo aí.

— Hum-rum! — Acabo apoiando a cabeça no vidro, totalmente pra baixo. Só vejo mato, e uma estrada de terra que fica cada vez mais estranha.

— Qual é desse hum-rum, em?

Conto sobre a briga e como gritamos uma com a outra, o nosso pai contínuo comendo, quebramos a decoração cara algumas taças e pratos, o namorado dela foi no banheiro para evitar escolher um lado. Quebramos mais coisas, gritamos mais. O nosso pai decidiu que a festa seria na sorte. A Selly ganhou, o dela vai ser no dia, e o meu no dia seguinte com um bolo só pra família.

Ela estaciona o carro perto dos outros. Tiro o cinto, somos abraçadas pela noite fria assim que colocamos os pés no chão. Ela bate a porta com força e vem pro meu lado.

— Que porre a sua irmã. Os meus irmãos só usam as minhas calcinhas na cabeça para brincar de super heróis, aqueles pirralhos!

Franzi o rosto em uma careta. Olho ao redor. Tem uma casa afastada onde toca música alta. O cenário parece familiar.

— Acho que já vi esse lugar em algum filme de terror onde as duas amigas são mortas na floresta! — Aponto para as árvores.

Ela revira os olhos. Passa o braço por cima do meu ombro e sai me arrastando na direção da batida. Eu poderia muito bem comprar nossa bebida, mas ela gosta de agitação e de beijar na boca. Mas ultimamente tenho sido mais exigente.

— Sabe conheci um cara em um after ontem, ele me convido para a festa de boas vindas do amigo.  — Comenta animada.

— Ele está voltando de viagem?

— Não Serena, ele foi preso, saiu ontem, mas não fala em voz alta que é grosseiro…

Paralisou no lugar. Se estamos falando de um presidiário, ou um ex presidiário, tanto faz. Vai dar muito ruim, por algum motivo eu atraiu esse tipo de cara e eles me deixam sem reação. Fico toda envergonhada e pareço uma idiota.

— Tá brincando comigo? — Me afasto irritada.

— É só uma festa. O que pode dar errado?

( … )

Absolutamente tudo dando errado. Parece que o estilo de roupa para vir era preto, com alguma estampa de banda de rock ou metal. E eu com duas tranças que fiz na pressa, laço na ponta. Saia rosa claro, blusa branca e casaco bege, não é bem o estilo. A Lena pelo menos usa um moletom marrom discreto.

Todos ficam encarando, até a música para. Começo a ficar nervosa. Mas logo percebo que não sou o centro do universo e olho para trás bem devagar. Arregalo os olhos como se tivesse visto um fantasma, mas talvez eu tenha. Ele está no batente da porta, com um pé para dentro, e uma tornozeleira.

A figura encapuzada que eu vi na minha janela, ele tira a máscara descartável puxando de uma orelha a outra com a ponta dos dedos, seu sorriso aparece. Sinto arrepios e meu fôlego some, me sinto extremamente atraída pelo perigo que ele oferece. Conforme ele pisa o coturno e anda as pessoas abrem espaço. A Lena fica parada no primeiro momento, ela vai na direção dele, passa direto e se joga no cara atrás da atração da festa.

A música volta. Me sinto deslocada e esquecida. Vou de fininho como quem não quer nada, tentando passar despercebida. Aposto que se eu ficar no carro a Lena nem vai notar.

— Serena! — Ela fala meu nome tão alto e com tanta espontaneidade, que pulo no lugar.

Viro para na sua direção. Abraço os meus braços para esconder a tremedeira. Ri de nervoso.

— Acho que vi uma fogueira ali fora. Tá tão frio aqui, né? — Sua resposta demora tempo suficiente para o cara estranho com tornozeleira, que ainda estava parado prestando atenção na conversa, tirar o seu moletom.

Não tenho palavras para dizer o que ele fez com o meu coração. Ele roubou as borboletas na minha barriga e tranco em numa gaiola. Ele pôs o moletom quentinho em cima dos meus ombros e me ajudou a passar os braços. É tão aconchegante que esqueço até o meu nome.

— Não esqueci de devolver, falo lacinho?  — Se inclina para fala comigo. Tento puxar as mangas, me sentindo meio aquelas garotas que forçam a barra pra serem fofas e acabam sendo irritantes pra caralho.

Faço que sim várias vezes com a cabeça sem ter o que dizer. Cruzo os braços de novo, a Lena tira os óculos de coração, me lança um sorriso malicioso apontando com as sobrancelhas para o ex presidiário do meu lado. Posso imaginar o que ela está pensando, “Ele quer te dar”.

Obscura ilusão.Onde histórias criam vida. Descubra agora