Capitulo 10

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Selene

"Não há sangue que o sangue de fogo não consuma"


  Minha mente está se revirando com essa maldita frase, por qual motivo eu estou assim, eu realmente não sei, por alguma razão desconhecida eu ficava votando nela repetidas vezes, estou me escondendo deitada no campo de flores silvestres, Maera sempre tenta me enfeitar nessa data e eu ouvi Jack e Lyra conversando sobre fazer algum tipo de comemoração, fecho meus olhos com força e desejo sumir pelo resto do dia, faltei ao treino e ainda não tive a decência de encarar Eirik, mas sei que ele irá compreender minha ausência.

Eu acredito que deva ser egoísmo da minha parte, mas não sou tão receptiva no meu aniversário.
— Uma hora eles vão te encontrar. - me assusto me levantando e dando de cara com Naum.
— Agradeço se não falar nada.
— Pode deixar, você quer uma tâmara? - ele diz abrindo um saquinho de pano, estendi minha mãe para poder pegar uma e ele senta ao meu lado. — Feliz aniversário.
— Obrigada Naum. - ele apenas sorri pegando outra tâmara para comer. — Eu já irei voltar para as minhas obrigações.
— É seu aniversário, acho que você pode se dar ao luxo de não fazer nada. Amanhã o general Thalor irá nos designar, espero ser mandado para o Tenente Orin. - eu concordo com um meio sorriso, esse é um assunto que eu não queria conversar, justamente hoje.
— Não sei bem onde quero ficar, talvez sob o comando do próprio General. - ele me ofereceu outra tâmara e não pude negar, essas coisas são tão boas.
— Vamos descer juntos... estou ficando com fome. - eu digo me levantado e Naum vem logo em seguida. — Jack e Lyra estão me devendo uma torta de amora.


༄༄༄

  Estou sentada ma cadeira mais próxima da janela, a mesa está lotada de bebida e comida e três grandes tortas de amora, a bebida fermentada é boa, mas amarga em demasia para o meu paladar, a taverna das Ravinas é um lugar normalmente frequentado por membros do exército ou por homens mais velhos, às paredes são de pedra bruta e cobertas por tapeçarias desbotadas e armas antigas, as mesas de madeira estão gastas tanto pelo tempo, quanto pelo uso frequente, mas há uma certa acolhedora familiaridade no ambiente, em uma mesa próxima da nossa eu vejo Daimian Thalor e outros soldados, tem algumas mulheres com eles, parecem comemorar.

— Eu sei que isso é horrível, mas eu pedi outro caneco para você. - Lyra diz enquanto come um pedaço de coxa de ovelha, eu olho para o meu prato já vazio e não sinto vontade de pedir outro, Jack está sentado na nossa frente entretanto ele está focado em Myrally, uma jovem ruiva que era cortejada por quase todos os homens em Aldraskar, na verdade nesse momento quase todos dentro do Ravinas estão olhando para ela, alguns até emocionados.
— Ela canta muito bem, não acham? - profere Naum.
— Divinamente. - eu concordo, Myrally cantava em uma melodia melancólica uma tragédia, um coração de gelo e outro de fogo, um amor intangível, uma música antiga e conhecida em quase todo território de Armenfer.
— Eu a amo. - Jack fala terminando de tomar sua quinta caneca de Knef.
— Você e todos aqui aparentemente. - Lyra diz e olha para mim revirando os olhos, damos risada e Jack faz careta para nós.
— Esse é o melhor aniversário que eu poderia ter. - eu digo e Lyra me abraça, Myrally termina a música e é ovacionada por aplausos e elogios, alguns mais intensos que outros, outra rodada de Kyef é servida em nossa mesa e Jack comemora urrando.
— Desde quando somos amigas de um idiota? - Lyra diz rindo
— Desde que você atirou uma flecha nele quando tínhamos cinco anos. - antes que ela possa falar, é anunciado a trupe teatral, a peça é uma sátira aos De Noir, eu nunca tinha assistido, mas Lyra me falou que é engraçada.
 
   A abertura de pano acontece e o primeiro ato começa, os adereços eram bem feitos, atores vestidos de Lucien e Senhor Sombrio estão encenando uma discussão, uma discussão tola sobre serem da realeza ou não, e uma mulher claramente loira com uma peruca preta e de corpo um pouco avantajado sai de trás da cortina, usando um vestido preto desbotado mas que algum dia deve ter sido lindo, ela é Rosallind ou uma versão disforme da realidade, como tudo ali.
— Eu serei rainha um dia! - sua fala é recebida com tapa em seu rosto, todos ficamos chocados, pois pareceu ser bem real a atuação, mas arrancou risada de algumas pessoas.
— Isso é Ignóbil. - eu falo baixinho para que Lyra me ouça. - a mulher se levanta do chão e segura um lenço preto balançando ele no ar e algumas pessoas riem.
— Eu tive uma criança fraca - o ator que faz o Lucian ri, uma risada forçada para parecer grave demais. — Uma vadia fraca. - algumas pessoas repetem a fala e isso é extremamente desconfortável.
— Matem a bruxa vadia. - um bêbado grita, olhamos para homem que joga uma caneca de knef no chão. — Todos sabemos que às trevas chupam os peitos dela. - Naum ri juntamente com outras pessoas também.
— Saia! - o voz tempestuosa da Daimian irrompe o ambiente me causando arrepio de medo, ele se levanta de seu lugar e anda até homem temulento, nunca tinha visto o General Thalor agir de maneira tão abrupta.
— Por que? Você também está chupando ela? - às risadas contidas são silenciadas pelo soco brutal e repentino que Daimian Thalor desfere no homem que cai no chão, o general parece se transformar quando ele avança no homem que tenta de maneira medíocre se defender, Daimian continua de forma impetuosa a golpear o homem até que o vermelho do sangue é visível em suas mãos, algumas pessoas gritam e três soldados, tentam pará-lo mas Thalor é o dobro daqueles homens, a violência do general Thalor enche o ar com um peso sufocante, o sangue respinga tingindo o chão de um vermelho escuro.

Os gritos de pavor de quem presencia se mistura ao sons de dor do homem e dos golpes que lhe são infligidos, dois dos maiores soldados conseguem segurá-lo, puxando-o para longe do homem, agora inconsciente e ensanguentado no chão. Daimian Thalor respira pesadamente, seu olhar ainda feroz, ele olha em volta e todos evitam fazer contato visual, exceto eu, sinto um calafrio enquanto nossos olhares se cruzam, Lyra ao meu lado, puxa meu braço trazendo-me de volta ao presente.
Vamos sair daqui. - ela sussurra, e eu concordo, sentindo a necessidade urgente de deixar a taverna. Enquanto saímos, noto Naum e Jack nos seguindo, a atmosfera de comemoração foi destruída e ninguém mais está animado, a noite está fria e tranquila, um contraste marcante com o tumulto que acabamos de presenciar.
— Eu nunca vi o General Thalor assim. - Naum comenta em voz baixa.
— Ele estava... possuído. - Jack acrescenta, balançando a cabeça. — Isso foi assustador.

  Lyra me dá um olhar significativo, e eu sei que ela está perguntando se eu estou bem, assinto, tentando processar tudo o que aconteceu. O caminho de volta para casa parece mais longo do que o habitual, o peso das últimas horas deixa um gosto amargo na boca e as palavras "Não há sangue que o sangue de fogo não consuma" ecoam incessantemente em minha mente, há algo profundamente inquietante sobre essa frase. Finalmente em casa, abro a porta e entro sentindo o calor reconfortante do lar. Sento-me à mesa e percebo que Maera passou aqui, tem caldo de legumes e algumas frutas na mesa, Maera é uma pessoa tão atenciosa, vejo também o pacote que Eirik me deu dentro continham uma roupa nova para usar na cerimônia de amanhã e uma carta, eles são minha família.

  Deitada em minha cama, meus pensamentos não me permitem dormir ou simplesmente descansar, olhando para estrelas eu vejo o quão pequena eu sou comparada com tudo isso ao meu redor.
Enquanto eu tento dormir a frase, voltava ao meus pensamentos e eu sei que terei que ir a biblioteca novamente, para ler o livro novamente, o céu está sereno e tranquilo como todas às noites até que, de repente assim como na noite da fogueira, um feixe de luz avermelhada surge no céu e quase que tão depressa a luz some novamente.

   Uma memória distante começou a emergir das profundezas da minha mente, era uma lembrança nebulosa e fragmentada, mas agora, parecia ganhar vida. Lembro-me vagamente de estar em um quarto escuro, iluminado apenas pelo brilho suave de uma lareira. Minha mãe, Anny, estava ajoelhada diante de mim, segurando minhas mãos pequenas nas suas, seus olhos, normalmente tão cheios de ternura, estavam sérios quase temerosos, ela sussurrava palavras que eu mal compreendia na época.
Selene, você deve lembrar, meu bem. O sangue de fogo... Ele nos dá força, mas também traz perigo. Não há sangue que o sangue de fogo não consuma. - às palavras ecoavam em minha mente como um trovão na tempestade. O que isso significa exatamente ?

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