Capítulo 1- Maria Eduarda

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Ergui os olhos para o portão alto de ferro, com um brasão suntuoso na parte superior, onde uma letra solitária, F, se destacava de forma orgulhosa sobre as formas abaixo, que lembravam desde lobos e dragões, até flores desabrochando.

Eu não entendia direito qual era a importância de um sobrenome ou de um brasão até ver como aquele simples pedaço de ferro me fez sentir pequena e sem importância.

Minha família não tinha um brasão. Bem da verdade, eu não tinha sequer uma família. Era o estorvo que foi atirado para lá e para cá entre os parentes, então não posso me considerar família de ninguém.

- Olá - um homem alto e velho apareceu ao fundo do jardim. Ele me encarou com simples curiosidade enquanto eu tentava arrumar meus cabelos desalinhados atrás da orelha. - No que posso ajudá-la?

- O SINE me mandou para a vaga de babá - disse a ele, quase gritando, já que a distância entre nós permanecia maior que minha força vocal.

O homem assentiu. Ele deu meia volta e, em seguida, o portão começou a fazer barulho. Um ranger intimidante que fez meu coração acelerar. Quase como num filme de terror, eu percebi que cada passo que eu dava em direção à mansão parecia me levar a um filme assombrado.

- Podia ter tocado o interfone - 0 homem sorriu para mim. Percebi ser um senhor de sessenta ou setenta e poucos anos. Ele se vestia como os mordomos de filmes que passavam na sessão da tarde. - Se eu não a tivesse percebido parada ali, teria ficado esperando por horas.

Eu sorri para ele, envergonhada em dizer que estava pensando se devia tocar ou não o interfone. A verdade é que eu precisava trabalhar, como sempre precisei desde que completei dezoito anos e a pequena pensão que recebia de minha mãe foi cortada pelo governo. Ainda assim, o lugar me enervou e eu quase retrocedi.

- Como se chama? - ele indagou.
- Maria Eduarda - estendi a mão para cumprimentá-lo. - Fiuza - completei. Quase não usava o sobrenome.

Aos quatro anos minha mãe sofreu um acidente de carro. Ela ficou alguns dias internada no hospital, e depois faleceu. Meu pai sumiu pouco depois, disse que não tinha como cuidar de uma criança sozinho. Descobri anos depois que ele já tinha outra mulher, e ela não quis a responsabilidade de uma criança. Eu fiquei na casa de uma tia até os sete, quando ela se cansou e disse que os demais parentes também tinham obrigação. Assim, eu zanzei durante toda a infância e adolescência entre casas de tios que não me queriam. Minhas mudanças prejudicaram meu aprendizado e eu não consegui sequer me formar no ensino médio.

Quando completei dezoito, a tia que me acolheu depois dos dezessete disse que eu precisava cuidar da minha vida. Então, eu busquei um emprego. Fui doméstica por cinco anos de uma senhora que tinha uma menina pequena. Eu não era paga para cuidar da menina, mas cuidava porque descobri que amava crianças.

Ou talvez amasse a infância que não tive. Nunca vou saber com certeza.

Quando a senhora foi embora para outra região do país, eu comecei a procurar trabalho como babá. Trabalhei em várias casas, conheci muitas crianças, e tudo foi muito especial para mim. No meu último trabalho, cuidei do menino dos sete até a pré- adolescência, quando a família me dispensou porque não precisavam mais de mim.

Durante os breves períodos de inatividade eu ficava em pensões baratas, mas mesmo que fossem baratas, eu precisava do trabalho para
pagá-las. Então, eu praticamente aceitava qualquer serviço, mesmo que fosse longe ou mesmo que fosse difícil.

- Certo, vamos entrar, Maria Eduarda - ele disse, me dando as costas e volvendo para a mansão. - Eu sou Samuel, o mordomo.

A casa tinha mordomo! Eu fiquei sem palavras, não apenas porque era a primeira vez que eu conhecia um mordomo, como era a primeira vez que eu entrava numa mansão dessas.

O filho que você não quisOnde histórias criam vida. Descubra agora