O quadro de Analy permanecia sobre a lareira, um retrato que encomendei de um artista francês em uma de nossas viagens a Europa. Baixei meus olhos para a construção em tijolos maciços abaixo, vendo o resto de carvão que permaneceu ali do inverno longo que tivemos no ano anterior.
Tão longo e tão duro ...- Você devia mandar tirar o quadro.
A voz de Arlete, as minhas costas, me fez arquear as sobrancelhas. O que diria meu avô, ao ver o neto que ele criou com tanto esmero, sofrendo por uma mulher que não o quis?
- Ela é a mãe das crianças. O quadro deve trazer algum conforto.
Eu não me voltei para Arlete, mas sei que ela moveu sua face recriminadora, num balanço negativo. Estava certa, claro. Eu devia mandar tirar o quadro, assim como devia esquecer meu casamento que já acabou.
Nós já assinamos o divórcio.
Eu não queria, mas assinei sem reclamar.
Porque meu amor por Analy era tão grande que aceitei perdê- la apenas para vê-la feliz.- Já começou errado, menino. Nunca devia ter se apaixonado por uma estrangeira. Ainda mais uma castelhana.
O "castelhana" foi pejorativo. Analy não era de Castela, na Espanha. Eu entendia que o tom de Arlete era quase como um deboche por causa da origem argentina. Minha antiga babá - e agora governanta - nunca gostou de Analy. Dizia aos meus ouvidos que minha ex-esposa era uma aventureira. Não era mentira, Analy queria viver tudo que pudesse, experimentar todas as sensações, parecia não entender que a vida ao meu lado exigiria calma e retitude.
Ouço passos e vejo Samuel entrando na enorme sala que era decorada da mesma forma há mais de cem anos.
- Bernardo ligou - citou o gerente de uma das minhas empresas. - Perguntou se o senhor gostaria de jantar com ele para discutir alguns contratos.
Concordo.
-Por favor, diga a ele que me encontre no restaurante de sempre.
Samuel se afastou em seguida. Meu mordomo era sempre discreto e direto. Volto meu rosto para Arlete, e vejo nela um pouco de alegria.
- Faz bem em sair com seu amigo, meu filho - ela disse. - Vai ser bom respirar outros ares e ...
- Vai ser só um jantar, Arlete.
- Precisa parar de se sentir culpado, Tavinho - ela me chamou como chamava quando eu tinha cinco anos. - Você é um bom homem e não tem culpa do que aconteceu.
- Nunca houve um divórcio entre os Figueiredo - murmurei. - Eu sinto como se meu avô estivesse muito decepcionado por eu não ter lutado para manter Analy comigo.
- Lutado, como? Forçando a moça a ficar, algo que ela não queria?Dei os ombros. Talvez essa fosse a resposta.
- Pode ficar com as crianças para eu sair à noite?
- Claro que sim. A babá chega quando?
- Amanhã vou pedir para Gustavo buscá-la. Ela me passou o endereço de uma pensão na zona norte.
- Ela não tem casa? Mora numa pensão?O olhar de Arlete ficou arregalado, mas não havia julgamento.
- Pelo jeito a moça é bem pobre - destaquei.
- Vou preparar um quarto lindo para ela! - Arlete exclamou. - Para ela sentir que tem um lugar bonito para ficar. Gostei do olhar sincero dela, acho que vai ser uma ótima babá.Também achava, especialmente pelas recomendações em seu curriculum.
- Algumas coisas ... Você pode pedir para ela prender os cabelos? - indaguei. - Acho estranho eu mesmo falar, já que sou homem. Esse devia ser o papel da patroa.
- É claro, querido. Mas, por que te incomoda? Analy também tinha grandes e cacheados como os dela, e vivia com seus cabelos longos soltos por aí.
- Talvez por isso - admiti.
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O filho que você não quis
RomanceUm filho com ela seria apenas um bastardo... Quando o conde Otávio Figueiredo se viu sozinho com duas crianças, não teve escolha a não ser encontrar uma babá que pudesse cuidar de seus filhos. Recém-divorciado e ainda apaixonado pela ex-mulher, ele...