Força total

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A semana começa com força total e tento processar tudo o que Rafaela me contou.
Sobre Betta? Não me interessa. Não me importa. Sei que ela não quer nada com ela, realmente acredito nisso, embora eu não tenha querido me aprofundar no assunto do pai. Agora entendo por que nunca fala dele.

Quanto ao sobrinho, eu compreendo, mas a história me inquieta. Se algo acontecesse com minha irmã e meu cunhado, não tenho a menor dúvida de que Luz ficaria comigo. Eu cuidaria dela e por nada no mundo ia querer vê-la sofrer.

Morar na Alemanha nunca me passou pela cabeça. Mas, por Rafaela, eu iria. Prefiro viver com ela a viver amargurada sem ela. Isso está claro para mim, se bem que preciso
pensar um pouco melhor. Ir embora significaria ver menos meu pai, minha irmã e minha sobrinha, e isso seria difícil para mim. Muito difícil.
Mas o que me desequilibra emocionalmente é a sua doença.
Procuro na internet toda a informação sobre glaucoma e entendo o medo e a preocupação de Rafaela. Choro na minha casa quando ela não está por perto. Só então eu
me permito chorar. Tenho que ser forte. Ela deixou claro o medo que sente da doença, e não quero que perceba que eu também estou com medo.

Pensar em Rafaela cega me parte o coração. Rafaela, uma mulher tão forte, tão dominadora, tão cheio de vida... Como pode ficar cega?

Começo a ter pesadelos. Já são quatro noites seguidas em que acordo sobressaltada entre seus braços e ela me abraça e se arrepende por ter me contado tudo. Meu apetite desaparece e, ainda que eu tente sorrir, o sorriso fica no meio do caminho. Quase não
cantarolo mais, nem danço direito, só consigo pensar nela. Só quero saber que ela está bem para que eu também fique bem. Mas uma noite, enquanto nós duas lemos estiradas no sofá do meu apartamento, vejo em seus olhos a raiva e a dor pela insegurança que
me passou, e me dou conta de que tenho que fazer alguma coisa.
Meu comportamento tem de ser outro.
Preciso que ela veja que voltei a ser a Bia maluquinha que ela conheceu, então Resolvo reprimir meu medo, a insegurança e as lágrimas e começo aos poucos a ser o que eu era.

Ela respira aliviada e parece grata pela minha mudança.
A partir de então, Rafaela começa a viajar mais à Alemanha. Seu sobrinho precisa dela e ela precisa de mim tanto quanto eu preciso dela. Duas semanas depois, quando o despertador toca numa segunda-feira às sete e meia, Rafaela já está de pé. Chega perto de mim, me beija com carinho e aceito tudo com prazer. Me nego a irmos juntas ao escritório. As pessoas fariam fofoca e eu não quero isso. No fim das contas, Rafaela telefona para Tomás, que a pega na porta da minha casa. Eu vou no meu próprio carro.

Na cantina do nono andar, tomo um café na companhia de Fred quando vejo Rafaela aparecer com minha chefe e outros dois chefes. Pela maneira como ela me olha, entendo
que se incomoda de me ver com meu colega. Mas não me levanto. Fred é meu amigo, e Rafaela precisa aceitar isso.

Quando voltamos às nossas salas, sinto que ela me observa da sua. Cada vez que meu olhar cruza com o dela, meu corpo arde.
Sei o que ela pensa...
Sei o que ela quer...
Sei o que ela deseja...
Mas nós duas devemos manter a compostura e esperar a noite, quando então poderemos curtir nosso momento de intimidade.

Ao meio-dia, Rafaela sai de sua sala. Sua cara é indescritível. O que será que houve com ela? Eu a sigo com o olhar, dissimuladamente, enquanto ela caminha pelo andar e de
repente vejo que vai direto falar com uma jovem loura perto dos elevadores. Dão dois
beijinhos na bochecha e ela lhe acaricia o rosto. Será que é Betta?
Por alguns minutos conversam e depois vão embora. Uma hora depois, Rafaela volta ainda com a mesma expressão e eu gostaria que ela me chamasse. Espero quinze minutos e,
como ela não me chama, decido entrar por conta própria. Rafaela está falando ao telefone.
Quando me vê entrar, despede-se do seu interlocutor antes de desligar.

— Agora não posso, mãe. Te ligo daqui a pouco.

Assim que desliga, olha para mim.

— Deseja algo, senhorita Andrade?

— Nem minha chefe nem Fred estão por aqui — explico. — O que aconteceu?

— Nada. Por que teria que ter acontecido alguma coisa?

— Rafaela... te vi sair com uma jovem loura e...

— E o quê?

Sua voz é de aborrecimento.
Esse tom irritado que ela usa me deixa chateada, então, sem dizer mais nada, dou meia-volta e saio da sala. Antes de chegar à minha mesa, meu telefone interno toca e é Rafaela me pedindo para voltar. Volto e fecho a porta.

— Bia... o que você veio perguntar realmente?

— Acho que combinamos que haveria sinceridade entre nós duas e tenho a sensação de que hoje você não está cumprindo o combinado.

Rafaela faz um gesto concordando. Entende o que digo.

— Entre no arquivo.

— Lá vem você com essa história de arquivo!

— Bia... é o único lugar onde temos privacidade.

— Bem, você é que gosta de resolver tudo no arquivo.

Sem me deixar falar mais nada, me pega pelo braço e fecha a porta de acesso à sala da minha chefe.

— Bia... te juro que você não tem que se preocupar com essa mulher.

— Ok... Mas quem é ela?
Sorri e sussurra:

— Me dá um beijo e eu te digo quem é.

— Nem pensar. Você conta e depois eu te beijo.

— Bia...

— Rafa...

Sem perder um segundo, me agarra, me atrai para si e me beija. Então, quando parece que vai responder à minha pergunta, ouço Fred bater na porta da sala.
Rapidamente, Rafaela me olha.

— Você não tem com que ficar preocupada. Hoje tenho muito trabalho e não posso me atrasar, mas no fim do dia conversamos na sua casa, combinado, querida?

Combinado, claro. Ela me dá um beijo rápido e sai em direção à sua sala. Abro com cuidado as portas do arquivo e saio pela sala da minha chefe.

Depois do almoço, volto à minha mesa e no corredor topo com Rafaela. Ela está conversando com o chefe da administração e, ao me ver, apenas me cumprimenta com cordialidade. Sorrio sem jeito quando cruzo com ela e ando até minha mesa. Ao chegar,
pego uns documentos e me enfio no arquivo. Mas me surpreendo ao ver minha chefe com várias gavetas do arquivo abertas.

— Estou procurando os dados do último trimestre de Alicante e Valência...

— Quer que eu procure?

— Não... eu vou achar.

Dou meia-volta para sair e vejo Rafaela parada na porta do arquivo. Me seguiu até ali.

— Boa tarde, senhora Kalimann  — sussurro quando passo a seu lado.
Minha chefe, ao me escutar, ergue os olhos e vê Rafaela apoiado na porta.

— Me dá um minutinho, Rafaela, e já te entrego o que você pediu.

Ela faz um movimento concordando e, enquanto deixo uns documentos em cima da mesa da minha chefe, ela me observa. Sorrio ao vê-la tão nervosa e tensa. Então, antes de sair da sala, me detenho, ponho a mão na maçaneta da porta e levanto a parte de trás da saia para lhe mostrar minha calcinha. Isso me faz rir, sobretudo quando me viro e
vejo sua cara de surpresa.
Achando graça do que acabo de fazer, saio da sala e me sento à minha mesa. Meu celular apita. Uma mensagem de Rafaela: “Vou te fazer pagar muito caro pelo que acaba de
fazer. Depravada!”

Sem me mover, olho de relance e vejo Rafaela sentada à sua mesa. Por alguns segundos, nós nos olhamos e eu me dou conta de que, de onde ela está, pode ver minhas pernas.
Dou uma checada em volta e, como não há ninguém, eu as abro e digito no celular: “A depravada deseja teu castigo.”

Volto a olhar para Rafaela e vejo que se mexe nervosa em sua cadeira. Quando minha chefe sai do arquivo, fecho logo as pernas. E, com um risinho bobo nos lábios, continuo
trabalhando.

The Boss / RabiaOnde histórias criam vida. Descubra agora