CAPÍTULO VI - MUDANÇA

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O eco do meu grito dentro do apartamento vazio deixou mamãe nervosa. O caminhão da mudança havia ido embora para o aeroporto dois dias antes, com destino ao Rio de Janeiro. Papai olhava a sala vazia atenciosamente, parecendo relembrar cada um dos melhores momentos em que passou ali e, agora, suas últimas horas. Pus os fones nos ouvidos e saí porta afora, sem encarar mamãe dentro dos olhos. Ela andou atrás de mim com uma echarpe verde sobre os ombos um tanto caídos de tamanho descontentamento. 

Papai apagou a luz e fechou a porta.

Estávamos a caminho do Aeroporto Internacional de Viena, quando vi os resquícios de neve acumulada em cima dos gramados na frente de algumas casas. O sol da tarde dava seus primeiros sinais, sorrateiro, com reflexos débeis, e as sombras das árvores, projetada contra as calçadas e ruas, denotavam a chegada de uma primavera ainda com bastante frio. Eu sabia que no Brasil estava um calor fora do normal, porque lá fazia um verão prolongado. Isso não me incomodava.

Papai estava feliz pela mudança. Ele deixara um velho amigo de confiança frente dos negócios em Viena, em troca a construtora o enviara para a filial do Rio de Janeiro. Mamãe mantinha-se quieta desde que saímos de casa. Havia uma coisa que eu nunca poderia deixar de lado ou esquecer; Lúcia Rodrigues. Eu manteria contato com ela para sempre, custasse o que custar. Coitada dela, ela ficou tão em choque ao saber da notícia da minha partida que quase fui parar no hospital por causa de dores musculares, por conta de um forte, porém demorado abraço que ela me deu durante incontáveis minutos, deixando meu corpo dolorido de tanto que ela o espremeu. Tentava não pensar – por um segundo que fosse – na partida de Frederik. Só me restavam lembranças dele agora. Lembranças as quais eu guardava com muito carinho dentro da minha mente e coração.

Parados agora no saguão de embarque do aeroporto, mantivemo-nos absortos frente à televisão; o plantão de notícias trazia como manchete de primeira mão um incêndio num prédio de tijolos verde-acinzentado.

- Pai, é a nossa rua – eu disse para meu pai sem pestanejar, assim que reconheci a rua de casa.

O cameraman afastou-se do prédio em chamas trazendo a câmera consigo. Uma explosão fez os vidros das janelas de todos os apartamentos daquele quarteirão explodir em estilhaços. Todos no aeroporto olhavam ao noticiário com muita atenção. Uns acometidos, outros horrorizados.

- Ainda bem que já fechei o negócio com o Sr. Eastwood – disse papai, a respeito da venda do nosso apartamento para um empresário americano que pretendia fixar residência em Innere Stadt.

Tirando os Arcanjos, os únicos que sabiam de mim eram Alexo e seu filho Roberto. Deles é que eu teria que me esconder. Um reflexo veio a minha cabeça; os seguidores do Anjo Renegado foram atrás de mim para me matar. Voltei meus olhos com atenção para o televisor; o incêndio havia começado no meu apartamento. Logo depois houve a evacuação. E, então a explosão total de todos os prédios do quarteirão.

Era isso o que Loreta tentava me explicar por carta. Para que saíssemos o quanto antes. "Aja como uma pessoa normal de agora em diante. No anonimato. Faça amigos e saia, mas não deixe que ninguém desconfie que você é uma Enviada do Todo-Poderoso e de onde você veio", dizia.

A única maneira de alguém descobrir quem eu era, seria se descobrissem de onde eu vim. Claro que nunca falaria para ninguém que não fosse de minha inteira confiança que vivi em Viena. Dava-me nos nervos ver mamãe quieta demais, sentada num assento longínquo, a esmo, esperando o guichê anunciar o embarque, que estava previsto para as 09h30. Eu odiava cada momento dos últimos anos em que passei com ela, mas agora eu a tinha castigado de tal forma que, por mais que um dia ela me perdoasse, sempre sobraria algum resquício de mágoa dentro de seu coração. Me achacaria – por mais que não tivesse culpa alguma – de tudo que desse errado no Brasil. Sinceramente, eu não me importava com isso nem um pouco.

Embarcamos - depois de quase duas horas de espera - no avião que destinava-se a São Paulo. Olhei pela última vez minha cidade da janelinha do avião. Adormeci ouvindo Speechless.

Acordei com um súbito sacolejo. O avião entrava em turbulência devido a uma massa de ar quente vinda do Mediterrâneo.

Treze horas depois de sairmos da Europa entramos no espaço aéreo brasileiro. Mais uma escala para partirmos definitivamente ao Rio de Janeiro. Quase uma hora depois estávamos sobrevoando o Rio. A cidade era maravilhosa a princípio.

Ao contrário do que eu vi quando estava dentro do avião, o descaso do governo com os moradores de rua e obras públicas eram tamanhos, que cheguei a imaginar se eu estava em alguma cidade abandonada – mesmo estando numa das cidades mais belas do mundo. Mas tudo isso foi esquecido quando nos deparamos com blocos carnavalescos se apresentando nas ruas da cidade. Botei a cabeça para fora do taxi; meu corpo entrou em um frenesi de excitação quando vi o quanto de garotas e garotos – despreocupados – se beijavam despudoradamente nas vielas.

- Esta é a Lapa, se lembra, querida? – comentou papai, apontando para o local. Eu o encarei, sorrindo, enquanto mamãe olhava com espanto a pracinha local sendo tragada pela multidão eufórica. – Eu te mostrei há pouco mais de uma semana, naquele guia de viagens que compramos na Graben.

Passamos pela enseada de Botafogo com o imponente Pão de Açúcar abraçando-a. Ao longe, pude avistar a estátua do Cristo Redentor, mas a rua apinhada de foliões roubou minha atenção mais uma vez, pois dificultavam a nossa ida. Como papai conhecia muito bem a cidade, não precisou nem sequer consultar um mapa, após avisar ao motorista que queria chegar ao Jardim Botânico.

Existia uma grande diferença socioeconômica no estado. Mas o Carnaval parecia juntar classes sociais, raças e credos. Tudo isso no mesmo ambiente. Aquilo era incrível.

Enviada - Série EternosOnde histórias criam vida. Descubra agora