Aquele sonho estranho fora cruel para minha cabeça, embora eu ter ficado ciente, através da boca de Dimitri, que Amanda foi parar no hospital porque alguns canos do banheiro no andar de baixo haviam estourado com a força da água e quebrado metade dos espelhos do mesmo. "Alguns ferimentos aqui, outras escoriações ali, mas nada que a deixasse acamada para sempre ou danificasse aquele rostinho de poodle adestrado que ela tem", comentou Dimitri, sorrindo do outro lado da linha. "Ouvi dizer também que o Sr. Amorim quer processar o colégio". Eu não havia ido para o colégio no dia seguinte ao ocorrido no banheiro. Por um lado foi bom, por outro, eu tive de mentir para mamãe que estava com cólica. Foi a única saída que tive.
Eu sabia que não foi aquilo o que aconteceu com Amanda. Eu fui a causadora do seu acidente. Minha raiva incontrolável me fez jogá-la contra o espelho. Eu não podia premeditar aquilo. Foi como se eu tivesse algum tipo de poder mental. Eu não sabia explicar direito o que era. Mas novamente os Arcanjos estavam mudando o tempo, pois ninguém soube mais uma vez da verdadeira história.
Na semana seguinte estávamos sentados lado a lado novamente. Não me cansava de pedir desculpas a Dimitri por ter dito que ele era tão superprotetor. E ele as recebia de bom grado. Encontramos Amanda no corredor do colégio, alegando fingidamente uma extrema dor de cabeça ao diretor Ribeiro. Ela me fitou com certo ar de repugnância. Não me intimidei... entrando na sala de aula. Mas o mais incrível era o fato de que ela não se lembrava de nada. Com certeza eu tive alguma ajuda. Loren, talvez?
- Entrem, meninos – apressei-me quando o Prof. Jorge deu um aceno de sua mesa.
O Prof. Jorge lecionava geografia. Tinha uns quarenta anos e seus óculos de aros grandes o deixava ainda mais com cara de CDF.
Dimitri passou na minha frente. Eu ri. Sentamo-nos.
Todas as garotas da sala gritaram em uníssono quando uma mão bateu na porta.
- Entre! – Concedeu o professor, revirando os olhos com o atraso de mais algum aluno.
- Obrigado! – disse uma voz suave. Descartei logo a voz de Amanda, que ficara para trás. Esta era uma voz doce e melodiosa, como um Romeu dos tempos modernos.
- Entre, por favor, Gustav – o Prof. Jorge não hesitou a se levantar de sua mesa para receber o aluno novo.
- Turma, este é Gustav Reltih – começou o professor.
Joguei a mochila na frente do corpo para me sentar melhor. Amanda entrara sorrateiramente na sala, já que todos, sem exceção, olhavam aquele garoto de olhar incrivelmente sedutor que acabara de chegar. Toda a ceninha daquela garota insuportável, sobre seu mal-estar e sua perna com aquela bota ortopédica, se fora quando analisou Gustav dos pés a cabeça, interessada.
Não o olhei de imediato porque eu sabia que ele me olhava, descartando os olhares avassaladores e cobiçosos de Amanda.
- Gustav será o mais novo aluno do São Judas e colega de classe de vocês. Espero que sigam com o bom comportamento que aqui lhes é dado – recomeçou o professor no meio do quadro. – Gustav teve que fazer as provas do primeiro bimestre e conseguiu ingressar com admiráveis excelentes notas ao segundo ano. Mas não toleramos, neste colégio, balbúrdias, hein.
"Gustav era perfeito", eu disse para mim mesma. Era alto e com um corpo extremamente musculoso para sua idade. Talvez tivesse dezoito. Tinha os cabelos escuros e encaracolados. E seus olhos eram negros como o breu. Estava com um boné de aba reta nas mãos fortes. O que fez com que o professor o confiscasse. Chato como sempre. As garotas da classe inteira suspiraram quando ele espalhou o cabelo para arrumá-lo. Ele realmente cheirava muito bem, exalando um aroma agradável que era indiscutivelmente de outro mundo, surreal.
- Os fones também. – Advertiu o professor.
Ele riu para o professor, com os fones nas mãos. Ok, disse-lhe, dando um risinho pelo canto da boca, entendido.
- Sente-se aqui, Gustav – chamou Amanda. Meu pescoço girou para trás sem meu consentimento. Amanda riu vitoriosamente.
- Esse é o famoso senhor-encrenca, Gustav Reltih – Dimitri chamou a minha atenção, dando dois estalos de dedos diante dos meus olhos. – Aquela moto lá fora é dele, então.
Minha dúvida a respeito de sua idade se concretizou. Para fazer uso de uma moto, com certeza, teria de ter dezoito anos.
Estava saindo da sala de aula, distraída em conversas com Dimitri, quando Amanda e Gustav também saíram em seguida. Os risos histéricos daquela babuína me davam nos nervos. Não pude deixar de manter a atenção em Gustav quando ele virou o corredor colocando o boné para trás. Já era difícil suportar a vida sem Frederik e continuar a ter uma vida social. Agora, ela se tornou mais conturbada com as intromissões de pessoas como Amanda.
Cheguei em casa quando já ia dar 13h00. Fui direto à garagem nos fundos de casa. Segundo papai, eu teria de fazer todos os sábados, a partir de junho, aulas de direção em uma autoescola para conseguir a carteira e, se eu a conseguisse com êxito, eu teria um presente de aniversário nos meus dezoito anos. Mas nem sequer eu tinha dezessete. Que enganação.
Fechei a porta e examinei o local com atenção. O Peugeot que papai usava para trabalhar estava ali, estacionado logo a minha frente. Entrei nele. Joguei a mochila no banco do carona. Eu estava em alta velocidade numa estrada reta, entre uma serra e um precipício. Meus cabelos espalhavam-se pelo meu rosto, me incomodando, porém, eu não conseguia tirar as mãos presas do volante. Acelerei mais, distinguindo tudo o que eu via a minha frente, ainda que eu estivesse de olhos fechados.
- Saia desse carro – veio uma voz longe de mim, bem no fundo da minha cabeça.
Reabri os olhos; tudo havia parado.
- Estou indo – eu disse. Mamãe continuava a resmungar. Abri o vidro do carro com cautela.
- Preciso dar uma saída – pronunciou-se ela novamente. Notei que ela estava vestida formalmente para algum tipo de evento ou similar. – Voltarei mais tarde com seu pai. Vou a um coquetel da empresa, ele insistiu para que eu fosse com ele. Seu almoço está dentro do micro-ondas... Esquente-o e almoce-o, estamos entendidas?
Assenti.
- Sim. – puxei a minha mochila e quando me virei, mamãe me agarrou e me deu um beijo na bochecha.
Ela insistia em me tratar como uma criança e impor suas listas ditatoriais. Em poucas semanas eu faria dezessete anos, mas nem assim ela se convencia de que eu estava crescendo. Despedi-me também.
Entrei em casa, ainda com Gustav rondando minha mente. Não o conseguia tirar de dentro da minha cabeça. Andei pela casa toda ouvindo música bem alto. Após ter tomado banho e almoçado, dirigi-me até o espelho do meu banheiro. Olhei o meu reflexo com atenção.
- O que há de errado comigo? – perguntei-me. Eu não estava conseguindo ser mais eu mesma. Tinha mudado completamente. Minhas feições tornaram-se mais delicadas e meus olhos, que eram castanhos escuros, tomavam de vez em quando uma cor castanha bem clara, quase para o verde.
Claro que eu nunca chegaria à beleza de Amazona de mamãe, nem a de Arcanjo de Loreta. Fui até o guarda-roupa, mas precisamente na parte onde estava minha necessaire. Caçava loucamente meu batom vermelho com componente de pimenta quando o achei bem no fundo de um estojinho de maquiagem. Voltei até o espelho. Fitei-me por duradouros minutos. Nem assim eu me parecia com as demais garotas do colégio. Eu estava artificial demais. E após incontáveis minutos transcorridos me apreciando diante do espelho, voltei para o lugar onde eu havia encontrado a minha necessaire.
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Enviada - Série Eternos
Ficção AdolescenteSinopse de Enviada - Série Eternos Tudo havia se tornado turvo em minha mente. Talvez fosse mais um dos meus sonhos esquisitos. Porém, não era. Frederik perdera suas asas. Meu Anjo se fora para talvez nunca mais voltar. Eu precisava me convencer que...