Parte 1: Branco 5 - Sinais, bombons e siderodromofilia

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Mais tarde, na aula de educação física, Marisa e Valentina se exilaram no banheiro para fugir aos tormentos de um campeonato de vôlei. Marisa finalmente teve oportunidade de conversar com a amiga e mostrar o texto que Marco lhe dera. Era um ensaio no qual constava a frase atribuída a Sartre que Marisa havia incluído na mensagem para o professor. Enquanto ela manuseava o texto com reverência, como se fosse um talismã sagrado, Valentina simplesmente o arrebatou e começou a ler.

Se a amiga tinha uma qualidade inegável, era a objetividade. O divórcio dos pais, quando era menina, incutira nela um ceticismo visceral só superado por sua simpatia pelos fracos e oprimidos. À época da separação, viera à tona que seu pai tinha outra mulher. Mais do que isso: ele tinha outra família. Valentina nunca o perdoou. Dizia que não se podia contar com ninguém e que a incerteza era a única coisa certa na vida.

Para ilustrar seu ponto de vista, a amiga mencionava o caso da sufragista inglesa Emily Davison que, no Derby de 1913, em defesa do direito ao voto das mulheres, pulara no meio da pista de corrida, sendo pisoteada pelo cavalo do Rei George V. No dia seguinte, a grande sensação noticiada pela imprensa não foi o acidente que tirou sua vida, e sim o cavalo azarão vencedor da corrida.

Do pai que tanto repudiava, Valentina havia herdado o nariz proeminente de perfil catalão, a boca exuberante e olhos intensos, castanhos como a cabeleira ondulada que lhe descia até a cintura. Dele havia herdado também a assertividade e a obstinação. Sendo uma das poucas alunas imunes à aura do professor de literatura, Valentina poderia fazer uma análise imparcial do caso. Ou, pelo menos, assim esperava Marisa.

No lavatório deserto, as únicas testemunhas eram as pias de louça branca que se enfileiravam numa bancada de granito cinza, além do espelho onde alguma menina havia desenhado com batom rosa uma misteriosa letra D enquadrada num coração. O ar recendia levemente a desinfetante de pinho, e de quando em quando os gritos dos alunos no pátio rebentavam como uma onda, subindo, descendo e corcoveando pela janela. Debaixo dela, sentadas no chão de cerâmica branca, Marisa e Valentina conferenciavam:

- Ele está me passando uma mensagem nas entrelinhas, Val...

- Lá vem você de novo - censurou-a Valentina. - O Marco orientou você, como faria com qualquer aluno. Não dá para ficar imaginando motivos ocultos em tudo o que as pessoas fazem. Você precisa de fatos, de provas concretas - Vendo que ela ia contestar, a amiga silenciou-a com o dedo em riste: - A cópia de um texto sobre o existencialismo não vale como prova.

A cada palavra que Valentina dizia, Marisa impacientava-se e discordava balançando a cabeça.

- Você não está entendendo, Val. O texto inclui a citação que eu mandei para ele, só que completa. E o que diz logo depois da frase que eu usei? O desejo exprime-se pela carícia, tal qual o pensamento pela linguagem. Você não percebe? Primeiro foi o sorriso, agora é a carícia...

A amiga coçou a cabeça, deu um suspiro e ergueu as mãos espalmadas, como se quisesse impedir fisicamente que Marisa cometesse um terrível, terrível engano. Encarou-a e, para reforçar suas palavras, segurou os ombros dela:

- Você vai ficar maluca se ficar procurando mensagens cifradas nesse texto. Eu vou ficar maluca. Por favor, não faz isso comigo. Estou quase com saudade do Palamedes e da guerra.

- E quando ele me chamou para tomar café, hein? - insistiu Marisa. - O jeito como nós nos identificamos foi... incrível. Você não estava lá para ver como ele me olhava. Repetiu meu nome várias vezes e ficou se inclinando na minha direção enquanto falava...

- E daí?

- Daí que isso são sinais, Val.

- Quem disse?

VERMELHO: Uma História de AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora