Parte 2: Negro 8 - Fruto do milagre

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- E os antúrios vermelhos?- Marisa perguntou assim que deitou no divã.

A Doutora Spitzer arqueou a sobrancelha, e sua expressão tornou-se tão hermética quanto uma caixa de charutos embalada a vácuo. Às vezes um charuto era apenas um charuto, teria dito Freud. Será...? A Doutora Spitzer estava um tanto enigmática aquele dia, e ainda por cima vestia um surpreendente tailleur azul-elétrico. Sem contar que seus escarpins eram brancos.

 - Depois - ela replicou com uma nota de impaciência. - Primeiro eu quero saber mais detalhes sobre o professor.

- Bom... - Marisa mirou o teto. - A classe inteira morria de medo dele. Estava sempre de mau humor. Enchia o quadro-branco com aquelas fórmulas de física que ninguém entendia...

A psicanalista interrompeu-a com a assertividade que lhe era característica:

- Fórmulas de física? Pensei que ele lecionasse literatura.

Marisa remexeu-se e mudou de posição. Em seu devaneio, o professor de física de bigode grisalho deu lugar à visão de Marco diante do quadro-branco...

- Ah... Marco... Ainda estou apaixonada por ele, doutora. É mais forte do que eu. Já fiquei com uns colegas da faculdade mas acabei achando todos sem-graça. A vida com Marco tinha maiscor, entende?

Marisa não conseguia apagar da memória o último encontro dos dois. O olhar de Marco disse-lhe tudo antes que ele falasse: era melhor não se verem mais. E então o corpo dela virou um peso morto despencando de um precipício. Não quero lhe causar mais problemas familiares, Mari. Além disso, a diferença de idade entre nós ainda vai criar descompassos. Gosto muito de você, mas não sou o homem certo para você. Tenho cicatrizes...

E ele disse que era maravilhosa e a admirava muito. Que lamentava não poderem continuar juntos e invejava o homem que seria capaz de dar a ela tudo o que merecia e ele não podia dar. Falava com extremo tato. Isso de nada serviu para minimizar a dor. Marisa não entendia como tudo podia mudar assim. Era como se nunca tivesse existido na vida dele.

Marco devolveu suas coisas: roupas que ficaram no apartamento, uma escova de dentes, a coleira de strass. Colocou tudo numa caixa de papelão e deixou na portaria do prédio dela. Da coleira, Marisa se desfez junto com os presentes de Marco: coletâneas de poesia, CDs, uma blusa de renda branca, um conjunto de lingerie preta. Não teve coragem de se separar do anel de pedras e guardou-o na última gaveta do armário, onde ficavam as malhas de lã.

A gaveta permaneceu intocada. Finalmente foi aberta quando chegou o inverno. As malhas de lã saíram, retornaram, algumas saíram de novo. A última peça da pilha, porém, cristalizou-se no fundo da gaveta e nunca se retirou dali. Era uma mortalha. Debaixo dela jazia o anel.

Dentro de Marisa, os dias eram silenciosos. E fora, onde quer que ela olhasse, enxergava os ecos de Marco - um dia, ao ver uma barraca vendendo jabuticabas na rua, pôs-se a chorar. Ela precisava se reapropriar da vida sem as marcas dele. Torná-la sua de novo. Sua. Não deles dois.

À exceção do anel, nada sobrou. Marisa rasgou bilhetes e cartões, deletou emails e a foto sorridente tirada na cozinha de Marco - ela atrás de um maço de temperos, ele com um ralador na mão. Não suportava a ironia das palavras e aquele sorriso agora sem sentido. Marisa apagou todo o rastro físico da presença de Marco. Só não conseguiu apagar o rastro invisível que persistia dentro dela.

Nunca mais Marco a procurou. A princípio ela não resistiu e inventou pretextos para lhe telefonar. Ele se mostrava sempre solícito. Mas estava mudado. Nessas ocasiões, conversavam com uma polidez distante que era muito pior do que a falta de contato. Marisa não ligou mais.

VERMELHO: Uma História de AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora