Parte 1: Branco 10 - Uma diabrura de olhos rasgados

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Valentina era a única que sabia. Marisa havia lhe contado tudo no dia seguinte ao seu envolvimento com Marco, quando as duas voltavam para casa depois das aulas. A amiga quase tropeçou ao saber da história. Depois despejou um balde de perguntas, aconselhou cautela e, afinal, mostrou-se entusiasmada com a novidade. Até sugeriu que Marisa usasse a enciclopédia de parafilias em futuros jogos eróticos.

Nos fins de semana, Marisa fazia arranjos com Valentina e dizia à mãe que ia dormir na casa da amiga para estudar. Então ficava com Marco. O problema é que estava cada vez mais difícil despistar a mãe, e as discussões vinham se multiplicando. Um domingo de manhã, Marisa perdeu a hora e voltou apreensiva para casa. Decidiu usar a entrada da cozinha por medida de precaução, pois com sorte lhe daria oportunidade de ir para seu quarto sem ser vista. E, com muita sorte, a mãe poderia até estar no banheiro se arrumando para ir à missa.

Marisa girou a chave na fechadura com movimentos milimétricos para não fazer barulho, empurrou a porta de mansinho e entrou. Avançou na ponta dos pés, mas já no meio da cozinha ouviu o matraquear da televisão. Resignou-se. Quando chegou à sala, a  decoração ao estilo Luís XIV descortinou suas campinas de tapetes savonnerie em flor. Ali havia mais quadros do que paredes, e os excessos embaralhavam a vista como um estereograma. Daquele emaranhado de aparadores enfeitados com toalhas bordadas e porcelanas, cristaleiras grávidas de relíquias e mesinhas eclipsadas por constelações de miniaturas em cristal checo, restava saber que imagem inesperada emergiria. 

Talvez um monstro com duas xícaras de Sévres no lugar dos olhos.

Na estante, uma coleção de porta-retratos disputava espaço com o televisor. Diante da estante havia o sofá azul e no sofá azul havia a mãe. Empertigada como um rochedo, ela assistia a uma comédia romântica no canal a cabo. O coque, tão repuxado que quase sugeria autopunição, compensava as pregas do robe bege, largo demais para ela nos últimos tempos. Seus olhos eram iguais aos da filha, de um castanho-claro ressaltado por cílios espessos. A diferença estava nas íris, que escureciam visivelmente quando ela ficava contrariada.

Naquele momento, a mãe fixava em Marisa uns olhos muito escuros.

— Você demorou a chegar.

— Eu precisei ficar até mais tarde na casa da Valentina para repassar as equações de matemática. Você sabe que eu tenho dificuldade com trigonometria.

A mãe não costumava ser tolerante com pontos de vista que divergissem do seu. E, do seu ponto de vista, a equação ali não tinha nada a ver com trigonometria. Ela não precisou nem abrir a boca para que Marisa previsse o mau tempo chegando. Mas naturalmente abriu, porque não se fazia tempestade sem trovão.

Enquanto o casal de protagonistas se reconciliava entre lágrimas na tela da tevê, a voz da mãe se sobrepôs à trilha melosa do filme:

— Assim não é possível. Você mal para em casa e nunca atende minhas ligações. Pensa que nasci ontem? Eu sei que você e aquela menina esquisita andam aprontando alguma coisa.

— Quer parar de falar assim da minha amiga? — Marisa esqueceu-se dos panos quentes. Mal continha a irritação. — Já tivemos essa conversa mil vezes. Será que é tão difícil entender que eu preciso estudar para o vestibular? Eu adoraria ficar em casa vendo tevê o dia todo como você!

— Olha o respeito, menina. Se o seu pai fosse vivo...

Na tela, o casal do filme agora trocava um olhar apaixonado e declarava: eu te amo.

— Eu sei, eu sei. — Marisa girou os olhos e assumiu um ar sarcástico. — Mas ele não está vivo, está? E você nem me deixou ir ao enterro. Como é que teve coragem de fazer isso comigo? Sabe qual é o seu problema? Você não me enxerga.

VERMELHO: Uma História de AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora