Parte 1: Branco 4 - Este é o texto

3.8K 175 10
                                    

Na manhã seguinte, quando os dois se cruzaram no corredor do colégio, Marco passou apressado e, sem se deter, endereçou um breve aceno a Marisa. Ela entrou na sala de aula com pensamentos borbulhantes e foi-lhe impossível concentrar-se na matéria. Enquanto fazia exercícios de trigonometria (errou todos), perguntava-se: será que ele ainda não havia lido sua mensagem? Ou será que tinha lido e achado absurda? brusca? convencida? desagradável? esfarrapada? falha? gratuita? hilariante? infantil...? Ai, ai. Ela podia percorrer o dicionário inteiro e nunca saberia.

A penúltima aula era de literatura. Marisa fingiu prestar atenção nas explicações de Marco, perscrutando-o para ver se ele a olhava de algum jeito diferente. O professor manteve-se perfeitamente neutro. Na verdade, Marisa ficou com impressão de que ele mal a olhava. Quando a aula foi chegando ao final, ela pensou em ir lá na frente falar com Marco para sondar a reação dele. Por que não? Pior do que estava não ia ficar.

Em breve, Marco recolhia seus pertences e preparava-se para deixar a sala. Marisa olhou-o indecisa, a garganta seca, o coração acelerado. Ela dispunha de apenas alguns segundos para tomar uma atitude. Marco já havia fechado a pasta de trabalho e ia se afastando da mesa. De um estalo, Marisa levantou-se e avançou entre as cadeiras, enquanto ia pensando furiosamente numa pergunta para fazer ao professor… O desespero sugeriu-lhe a pergunta perfeita: Marco havia mencionado a sensação que a Semana de Arte de 1922 havia causado ao quebrar paradigmas e, inclusive, que o compositor Villa Lobos tinha aparecido no evento calçando um sapato e um chinelo.

Pois bem, o que significava aquele chinelo? O desparelhamento dos calçados poderia sugerir por exemplo a fusão ou, ainda, o contraste entre a arte acolchoada da elite e a arte espontânea das ruas, sendo um ótimo pretexto para estender a conversa caso Marco estivesse aberto a isso. Boa, Marisa! Mal se felicitou, porém, e foi atropelada por uma mula a todo galope que abocanhou sua cenoura: Camila. Num segundo, a garota monopolizou as atenções de Marco. Indignada, Marisa hesitou, voltou para seu lugar e ficou assistindo à cena.

Camila era uma aluna mais velha apelidada de “Comível” pelos colegas, em virtude de suas curvas e do hábito de usar roupas provocantes para ressaltá-las. La Comível sempre dava um jeito de aparecer nas aulas de literatura (como agora, por exemplo) com alguma blusa bem cavada, que servia de vitrine para seu colo branco e o escandaloso pingente de ouro ancorado nele. Então ela, seu decote e o pingente perguntaram a Marco por que Villa Lobos se apresentou na Semana de Arte Moderna com um sapato num pé e um chinelo no outro. E, enquanto falava, Camila brincava sedutoramente com seus longos e castanhos cabelos; cabelos que teriam sido pulverizados caso olhares irados possuíssem a mínima ação pulverizadora (pois foi um tal olhar que Marisa lhe endereçou quando ouviu sua pergunta).

Rindo, Marco explicou que o fato foi interpretado como uma afronta ao público, quando na realidade Villa Lobos usou o chinelo por causa de um calo inflamado. Marco foi saindo da sala seguido de perto por Camila, que se mantinha junto dele como um cão de guarda e agora lhe perguntava… Marisa não pôde ouvir a pergunta porque os dois sumiram no corredor. Logo a seguir, o professor de física entrou na sala e já foi grunhindo para o quadro-branco como de costume. Camila retornou pouco depois e levou uma tremenda bronca, o que consolou um pouco Marisa.

Ainda assim, Marisa estava furiosa. Só não sabia se mais furiosa consigo mesma ou com Valentina. Aproveitando que o professor estava de costas para os alunos, ela mandou um torpedo para amiga.

O Marco está esquisito comigo. Por que você foi me dar um conselho idiota daqueles?

Sentada na cadeira ao lado da sua, Valentina tentava sem sucesso prestar atenção na aula. Assim que ouviu o bipe do celular, leu a mensagem e, disfarçando um sorriso, digitou:

Deixa de ser melodramática. Eu avisei para não mandar nada comprometedor.

É, você avisou DEPOIS de me aconselhar a mandar algo comprometedor, rebateu Marisa.

Calma. Se o que você mandou para ele foi só aquilo que me mostrou, nem é tudo isso, escreveu Valentina.

Pode não ser tudo isso para você, Marisa replicou irritada. Mas o Marco… eu nem imagino o que passa pela cabeça dele.

Quer saber, Ma? Eu achei o que você escreveu até bacana.

Desconfiada, Marisa olhou de soslaio para a amiga. Valentina arqueou as sobrancelhas, encolheu os ombros e devolveu-lhe um olhar inocente.

Val, você é uma mentirosa. Agora está querendo tirar o corpo fora.

Sério, Ma, achei bacana. Lê de novo o que você mandou e analisa.

Marisa não precisava ler nada. Sabia de cor o texto da mensagem: Marco, eu gosto desta frase de Sartre: “Acariciar com os olhos e desejar são uma única e mesma coisa”. — Marisa.

Valentina podia dizer o que quisesse, que não adiantava. Quanto mais Marisa pensava no assunto, maior era seu constrangimento. Marco lecionava para sua turma às terças e quintas, portanto no dia seguinte ela não teria aula de literatura. Ainda bem. Talvez Marco esquecesse sua mensagem e aí tudo voltaria ao normal. Quem sabe, nesse ínterim não acontecia alguma coisa bombástica para desviar a atenção dele? Como um incêndio no colégio ou uma guerra nuclear…

Mas se Marisa achava que evitaria um encontro com o professor no dia seguinte, enganava-se. Os dois se esbarraram no corredor da escola e, dessa vez, Marco parou para falar com ela. Aqui, é importante recordar as sábias palavras de Einstein: o tempo é relativo. Ele varia de acordo com o ritmo do coração.

Naquele momento, o tempo se desenrolou em câmera lenta para Marisa. Poderia ter-se acelerado até um piscar de olhos, pela ansiedade dela ao ver-se subitamente face a face com Marco. A surpresa, todavia, deixou Marisa sem ação, e não restou ao tempo senão diminuir o próprio compasso enquanto ela permanecia em suspenso.

A atenção de Marco fixou-se no rosto dela. Marisa percebeu o vestígio de um sorriso tomar-lhe o semblante. Não havia mais neutralidade nenhuma ali. A boca então exibiu a fileira de dentes alvos, os olhos se abrandaram. Marco sondou-lhe o rosto com uma eloquência que Marisa não soube precisar se era divertimento ou curiosidade. Ou ambos. Sem perceber, ela corou.

Marisa desprendeu o olhar do rosto dele e acompanhou o movimento das mãos abrindo a pasta de couro preta e retirando dali um texto impresso. Marco estendeu-lhe um par de folhas grampeadas, e Marisa espiou as letras de ponta-cabeça, que a seus olhos pareciam fileiras de formiguinhas levando no dorso mensagens secretas. Aí ela perdeu-se noutra eternidade enquanto contemplava as mãos morenas que se avizinhavam de seu corpo precedidas por brancas folhas de papel…

Nisso, duas alunas se acercaram de Marco.

O tempo retomou de um tranco sua marcha habitual, subitamente preenchido pelo burburinho do corredor, pelo céu cinzento recortado na janela, pelas luzes frias do teto.

— Esse é o texto que você me pediu — ele disse, e encheu as mãos dela de papel antes de se virar para as outras meninas.

Com o texto apertado entre as mãos, uma perplexa Marisa afastou-se levitando pelo corredor.

Ela não havia pedido nada ao professor.

VERMELHO: Uma História de AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora