Parte 1: Branco 18 - A sombra da dúvida

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No sábado, Marisa acordou uma hora mais cedo para estudar e foi fazer o teste simulado, um emaranhado de cruéis fórmulas de física que a deixou mais desanimada do que esperançosa com seu desempenho. Ao voltar para casa com Valentina, pressentiu de imediato algo errado: a televisão estava desligada. Na sala de estar pairava um silêncio encorpado, tão encorpado que parecia uma criatura viva respirando entre aquelas paredes. A mãe sentava-se no sofá azul de sempre - dessa vez, lendo a Bíblia.

- Muito bonito - declarou ela, magoada, fechando o livro. Sua boca, tendo perdido o hábito de sorrir, curvou-se para baixo como lua minguante num céu sombrio.

- O que foi? - Marisa olhou em torno e franziu a testa. - Por acaso eu esqueci a luz acesa?

- Você não tem mesmo nada para me dizer?

As íris castanhas da mãe faiscaram por um momento enquanto ela tamborilava os dedos sobre a Bíblia marrom que descansava a seu lado. Toc, toc, toc... Da cozinha, veio o súbito suspiro da panela de pressão e um bafejo de lentilhas. Marisa suspirou também.

- Por que você não fala logo qual é o problema? Eu deixei a toalha molhada em cima da cama? O leite fora da geladeira? - ela perguntou.

Toc, toc, toc...

Valentina encarava uma e outra. A tensão insinuava-se no ambiente sob o olhar vigilante de uma congregação de miniaturas de cristal checo. Marisa impacientou-se e cruzou os braços. Seguiu-se uma pausa dramática, com olhos lacrimejantes e certo exagero de cálculo quando a mãe ergueu o dedo acusador.

- Eu soube que ontem você estava na entrada do prédio se agarrando com um homem que tem idade para ser seu pai. Que história é essa, Marisa?

Marisa fitou-a desconcertada. Como a mãe poderia ter descoberto seu segredo? A resposta lhe veio num estalo. Dona Rosaura! pensou furiosa.

- Quem disse isso? Foi a vizinha fofoqueira do térreo? - Marisa fez-se de ofendida. - Que exagero. Eu não estava me agarrando com ninguém. Um colega me deu carona até aqui depois da festa e me beijou no rosto quando nos despedimos, nada mais.

- Então a dona Rosaura exagerou, é?

- Pelo amor de Deus, mãe. Aquela mulher está senil - Marisa arriscou, mas pôde ver o ceticismo estampado no rosto da mãe.

- Por acaso você acha que eu sou idiota? - ela vociferou, vermelha de indignação. - O que eu fiz para merecer isso? Tento lhe dar uma boa educação e olha o que acontece. Você é mesmo um caso perdido.

Valentina interviu, assegurando que tudo não passava de um mal-entendido. As sobrancelhas finas da mãe uniram-se numa carranca e ela sibilou:

- E você. Você é um caso perdido também!

- Quer parar com isso? Eu não aguento mais as suas críticas. - Marisa transtornou-se, agora tão vermelha quanto a mãe, ao passo que Valentina empalidecia. - E se eu estiver me relacionando com um homem mais velho, o que é que tem?

- O que é que tem? Eu quero saber quem é esse homem que você anda vendo.

- Não interessa. Você vai escorraçar ele como fez com o Louis.

- Vou escorraçar mesmo, pode escrever.

A mãe pisoteou as flores do tapetee cerrou os punhos. Iniciou-se um discurso que Marisa conhecia de cor. A mãe falou do noivo que a traíra e abandonara praticamente no altar. Repassou a punhalada nas costas, a humilhação, o coração despedaçado. Além disso, havia o egoísmo dos homens, a carnalidade e o fedor de charuto misturado a perfume barato. Como Marisa podia ser tão ingênua e não perceber que um homem mais velho só pensaria em aproveitar-se da situação? Ela precisava de um rapaz direito da sua idade, e de preferência católico.

VERMELHO: Uma História de AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora