Parte 2: Negro 7 - Algo diferente

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O Dez encerra um e zero, a harmonia entre os opostos. O Nove abraça três triângulos: corpo, mente e espírito. O Oito se deita no infinito. O Sete é o céu - sete escalas musicais, sete cores no arco-íris, sete virtudes. O Seis se divide nos dois triângulos da dialética. O Cinco soma os sentidos que captam a matéria. O Quatro chama o nome de Deus com os elementos da natureza, as estações do ano e os pontos cardeais. O Três traz a síntese de pai, mãe e rebento. O Dois sou eu e você. O Um é a gênese de tudo.

Ínfimo ponto em suspensão no espaço multidimensional, ponto de partida para todas linhas da criação: o número Um.

Marco segurou o dado de marfim entre o polegar e o indicador. Pensativo, contemplou o pequeno quadrado branco com o ponto escuro ao centro.

O jogo era um organismo vivo. As regras e o número de lançamentos mudavam, combinando-se para criar desde variáveis simples até as mais complexas. Cada lançamento afetava o próximo. Podia acontecer também do primeiro lançamento ser único, encerrando-se em si mesmo com um significado taxativo. Sem escapatória.

Esse havia sido o caso na véspera, antes que ele trapaceasse. Marco respirou fundo. Não. Não trapacearia. Estava cansado de subterfúgios.

Sabia exatamente o que tinha a fazer.

Guardou o dado na gaveta do criado-mudo e iniciou os preparativos num ritual elaborado - o diabo, assim diziam, morava nos detalhes. A diligência converteu-se em transe. A mente de Marco vagava fazendo planos e antecipando, enquanto as mãos se moviam num fluxo ininterrupto como se outra pessoa as comandasse.

A maleta de acessórios ficou esquecida debaixo da cama enquanto ele arrumava o quarto. Dessa vez não haveria incenso nem porto. Ou uísque. Trocou os lençóis e escancarou a janela para que o ar fresco enchesse o cômodo. Quando ficou tudo pronto, Marco despiu-se - sensação insólita de tirar uma pele velha - e entrou no chuveiro. Fechando os olhos, deixou a água correr por seu corpo durante um longo tempo. Sentiu-se subitamente exausto.

Terminado o banho, enrolou-se na toalha e foi para o quarto. O toque do celular sobre a cama arrancou-o de seus pensamentos com um sobressalto. Secou as mãos depressa e atendeu. Era ela.

- Oi. Só queria ouvir sua voz... Não sei explicar. Você está diferente dessa vez. - fez uma pausa. - Já começou os preparativos?

- Já, sim - Marco respondeu no piloto automático.

- Você passou na sex shop?

- Não. E pela sua conversa eu sei exatamente aonde você quer chegar. - Ele não pôde deixar de sorrir.

- Hmm, vindo de você, será que os planos para hoje envolvem algum clássico de literatura erótica? - Ela deu uma risadinha maliciosa.

- Não costumo usar material de trabalho para o lazer.

A jovialidade em sua voz soou estudada. Ela não percebeu e tentou adivinhar: se não era um clássico, haveria de ser algum livro barato daqueles bem sacanas... Não, não era. Um filme? Também não. A estridente curiosidade dela começava a dar nos nervos de Marco. Quando ela finalmente desistiu do jogo de adivinhação, ele permaneceu quieto. E ela, concluindo que estava ocupado demais para falar, pigarreou e despediu-se um pouco sem jeito. Marco desligou e respirou fundo. Não queria admitir, mas estava ansioso.

Pela primeira vez em muito tempo, a expectativa o dominava. Ignorava qual seria o desfecho daquela noite. Não era, porém, a reação da parceira que o inquietava: sabia como manobrá-la para levá-la precisamente aonde queria que fosse, já prevendo suas resistências e necessidades, conduzindo-a para despertar instintos adormecidos com os quais ela nem sonhava. Disso ele se desincumbia com facilidade. Era relativamente simples lidar com o outro, pois tinha o distanciamento necessário para enxergar com clareza. O problema era quando precisava antever as próprias reações, ficar face a face com esse outro que era ele mesmo.

VERMELHO: Uma História de AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora