Parte 3: Vermelho 13 - Nostalgia

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A caminho do hotel tinham permanecido quietos, Marisa de olhos fechados com a cabeça recostada no ombro de Marco, enquanto ele lhe afagava os cabelos e mirava a paisagem na janela do táxi. Na imobilidade espectral das ruas, as casas dormitavam envoltas num lençol de névoa. Passaram pelo Golden Gate Park à luz letárgica dos lampiões, e o uivo de um cão varou o ar branco que cheirava a eucalipto e flor de sal. Logo chegaram. No calor do quarto havia o silêncio, a claridade fraca do abajur - e eles dois.

Exaurida, Marisa desabou na poltrona azul ao pé da janela. Marco apanhou uma água tônica no frigobar e encheu dois copos. Beberam sofregamente, depois se entreolharam sem saber o que dizer. Tantas palavras. Ou nada... O celular de Marisa emitiu um bipe e ela virou o rosto com um sobressalto. Pegou o aparelho na bolsa e, vendo o registro de várias chamadas perdidas de Valentina, ligou para a amiga. Falaram por alguns minutos. Valentina contou que tinha procurado Marisa no clube e afinal saíra pensando que ela havia escapado ilesa. Não a encontrando na rua, tentou voltar ao clube mas foi barrada pelo leão-de-chácara.

Marisa, por sua vez, relatou o que lhe aconteceu sem muitos detalhes. Despediu-se, alegando exaustão, e não mencionou Marco. Antes de guardar o telefone na bolsa, Marisa decidiu mandar uma mensagem rápida para Mrs. Stevenson. Quando terminava de digitar, Marco aproximou-se:

- Quem era? Richard?

Ela apertou o botão Enviar e levantou os olhos confusa com a pergunta. Aí entendeu. Começou a rir, e seu riso tornou-se histérico. Marisa deixou o celular escorregar para o colo, o riso foi se extinguindo e seus olhos se encheram com o choro reprimido.

Ajoelhando-se diante de dela, Marco segurou-lhe as mãos.

- Ei... não fica assim. Já passou. Está tudo bem agora.

- Não liga para mim, Marco. Estou só desabafando. Eu senti tanto medo. O que mais me assustou foi a fragilidade de tudo, entende? Sem mais nem menos, tudo mudou...

- As coisas mudam, Mari. Também nunca vi um pandemônio daqueles... Olha, eu tenho uma coisa que vai ajudar você a relaxar. - Ele suspirou. - Na verdade, acho que estou precisando também.

Marco acariciou-lhe a face e empurrou Marisa suavemente contra o encosto da poltrona. Alcançou a cômoda, remexeu numa gaveta e voltou com um cigarro caseiro na mão. Sentou-se então na beira da cama de casal e, enquanto o acendia, explicou que era presente de um amigo que morava na cidade. Nos momentos que se seguiram, os dois fumaram em silêncio, apreciando a tranquilidade do quarto. Era como um bálsamo, longe da multidão e da música estridente. Longe dos gritos.

Quando terminaram, Marco ofereceu-se para levar Marisa ao pronto-socorro a fim de examinar a perna machucada. Ela agradeceu mas recusou, só precisava de um banho quente e de uma boa noite de sono. Disse que tomaria um táxi para casa. Marco insistiu que ficasse até se recuperar: havia uma toalha limpa e um roupão no banheiro, ela poderia tomar um banho ali e depois ele faria um curativo em sua perna. Marisa hesitou e por fim concordou.

Os dois se fitaram, e o ar ao redor deles foi se adensando. Já não era o episódio daquela noite que consumia seus pensamentos. Eram as lembranças que acordavam trazendo à tona desejos, sentimentos, palavras não ditas. Marisa baixou o rosto e, sem saber o que fazer com as mãos, guardou o celular na bolsa. Forçou-se a levantar da poltrona e dirigiu-se ao banheiro com passos arrastados.

Ouviu a voz de Marco às suas costas:

- Me avisa se precisar de alguma coisa.

Ela esmoreceu o passo imperceptivelmente e, aquiescendo, trancou-se no banheiro. A ducha prolongada aliviou sua inquietude e os músculos doloridos. Deixou-se abraçar pela água quente e ensaboou-se devagar, lavando aquela noite do corpo e tateando a pele limpa. A flor da pele. As mãos apalpavam a carne e escorregavam, escorregavam, escalavam montes, demoravam-se em concavidades... Agora não eram mais as mãos dela e sim as dele, como no passado... Marisa fechou os olhos.

Perdeu a noção do tempo. Se ficou ali um minuto ou uma hora, já não sabia. Quando terminou, enfiou-se no roupão branco e fez um turbante com a toalha para cobrir os cabelos molhados. Correndo a mão no espelho embaçado, traçou um círculo nítido que lhe devolveu seu reflexo. Mirou-se então com incredulidade. Seria um sonho? Estaria mesmo ali com Marco? A vida às vezes era estranha. De repente Marisa teve vontade de rir. O riso se estancou em sua garganta enquanto o espelho embaçava borrando seu reflexo. Seus olhos se embaçaram também, e ela os enxugou com um gesto rápido.

De volta ao quarto, encontrou Marco sentado na cama digitando uma mensagem no celular. Seu olhar dardejou para ela e desviou-se depressa enquanto ele interrompia a mensagem. Com expressão carregada, Marco deixou o aparelho no criado-mundo e massageou a nuca por um momento. Deu um suspiro, fez uma pausa, e toda a sua atenção concentrou-se em Marisa. Os olhos quase negros registraram cada detalhe dela, do rosto reanimado pela água quente ao colo branco, do talhe que o robe guardava às mãos e pernas que expunha. Marisa sentia-se vulnerável à proximidade dele. Fingiu ocupar-se com o cinto do roupão.

- Não vai tomar banho? - perguntou com falsa naturalidade.

- É, vou tomar uma ducha também. Descanse um pouco. Quer ouvir música?

- Boa ideia. Estou com saudade de música brasileira. Você tem alguma coisa da Céu?

Ele assentiu e levantou para pegar o MP3 ao lado da tevê. As caixas portáteis estavam ali, ele disse indicando o criado-mudo enquanto passava o tocador para ela.

Marisa rolou a tela, surpresa ao ver as listas de reprodução.

- Você ainda tem as minhas seleções?

Marco limitou-se a sorrir e desapareceu dentro do banheiro. Marisa logo ouviu a água correndo por trás da porta fechada. Ela escolheu uma faixa, encaixou o MP3 na base das caixas e enrodilhou-se na poltrona. Fechou os olhos, embalada pelos versos de Lenda sobre um príncipe mal-comportado.

Fique esperto

Hoje não tem papo

Jogo-lhe um quebrante

Num instante

Você vira sapo

Ela cochilou com a cabeça pesada, ao mesmo tempo em que tinha aguda consciência da presença de Marco a poucos metros dali. Tão perto e tão longe. O banho dele foi rápido, e Marco voltou enrolado numa toalha branca. Marisa despertou para a visão de torso bronzeado dele. Contra a sua vontade, pegou-se olhando os braços fortes e a trilha de pelos escuros que se iniciava no peito, sombreava o abdome definido e avançava por baixo da toalha...

Ele parou a seu lado com uma frasqueira na mão. Ajudou Marisa a levantar da poltrona e guiou-a até a cama para fazer o curativo. Ela sentou-se molemente com as costas apoiadas no travesseiro e as pernas estendidas. Arrumou o turbante semidesfeito, fechou o roupão e manteve a mão espalmada sobre a gola. Marco acomodou-se a seu lado e, num instante, desmanchou todo o arranjo, descartando o turbante que já desabava e abrindo o robe na altura das coxas.

Marisa seguiu seus gestos com o olhar e um estremecimento. Ele limpou o corte com um chumaço de algodão embebido em água oxigenada. Examinou-o e aplicou pomada num movimento circular. O ferimento não parecia muito profundo. Ele perguntou se doía quando passava a pomada e ela respondeu que não, não muito. Com gestos pragmáticos, Marco recortou um pedaço grande de band-aid e cobriu a área.

Aí sorriu.

- Mari, pelo amor de Deus, relaxa.

- Estou relaxada, Marco.

- Shhh...

Ele apanhou um frasco de hidratante no criado-mudo e umedeceu as mãos. Marisa concentrou-se nelas - grandes, morenas, brilhantes - e recordou quando haviam trilhado seu corpo pela primeira vez naquela tarde de chuva que pertencia a outra vida. Fitou Marco. No olhar dele, encontrou o mesmo reconhecimento. As íris escuras cintilaram um instante, prenderam as suas e se desviaram no momento em ele lhe segurou o tornozelo. Rodeou-o e desceu para o pé, aninhando-o entre as mãos. Começou então a massageá-lo com movimentos seguros e deliberados. Trabalhava sem pressa nos pontos de tensão. Depois em todos os pontos. Gradualmente, seus gestos tornaram-se voluptuosos, marcados por outro tipo de precisão: a que escapava à razão.

Por mais que Marisa quisesse resistir, foi-lhe impossível permanecer imune àquele toque. Lentamente, ela sucumbiu.

VERMELHO: Uma História de AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora