Parte 3: Vermelho 6 - Um novo dia

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Sentia-se um lixo. A luz do dia feriu-lhe a vista com a força de mil lanças. Marisa piscou algumas vezes, procurando ajustar os olhos à claridade. Depois tapou os ouvidos para silenciar a bomba-relógio armada em seu cérebro. Não adiantou. Tic-tac, tic-tac. Outra tentativa. Hmmm. Tic-tac, tic-tac. O problema, raciocinou ela, foi comer demais na véspera. Não devia ter pedido sobremesa.

- C'mon, honey, breakfast is ready!

Era Mrs. Stevenson chamando-a de novo para tomar o café da manhã. Ai, meu Deus. Só de pensar em comida. Mas talvez um café exorcizasse o demônio tailandês que tinha possuído seu estômago. Saiu tropeçando da cama, enfiou-se num abrigo e ziguezagueou até o banheiro para ficar mais apresentável. A próxima parada era a cozinha. Ao aterrissar na sala de estar, Marisa tapou a boca e quase pulou para trás quando as narinas indefesas foram assaltadas por uma mistura letal: cheiro de comida e o potpourri de flores que Mrs. Stevenson insistia em espalhar pela casa.

Marisa prendeu a respiração e correu para a cozinha. Ali encontrou sua anfitriã fritando panquecas com blueberries enquanto o marido lia jornal. Era um cômodo acolhedor, com eletrodomésticos brancos, armários de cerejeira e, ao centro, uma mesa quadrada posta com potes de geleia, manteiga, um cesto de pão e uma garrafa térmica. Vasinhos de violeta e cortinas de voal enfeitavam a janela. Os dois gatos, esfregando-se nas pernas de Mrs. Stevenson, miavam sem parar.

Marisa cumprimentou o casal e abaixou-se para acariciar os animais, que em geral eram muito afetuosos. Dessa vez, porém, seu afeto havia sido sequestrado pelo monte de panquecas que crescia sobre o fogão. Mrs. Stevenson relanceou Marisa por sobre o ombro e perguntou se ela havia se divertido. Fazendo um esforço para ignorar a bomba-relógio e o demônio tailandês, Marisa resumiu sua noite enquanto se servia de um café duplo. Aí sentou-se à mesa com Mr. Stevenson que, enrolado num robe xadrez, se entretinha na seção de esportes do jornal. Ele levantou os olhos da página.

- Ah, o Kashmir Lounge. Foi inaugurado nos anos setenta. Tem um público... interessante. - Com isso, tomou enigmaticamente um gole de café e voltou ao jornal.

Mrs. Stevenson, em contrapartida, salpicava palavras nos ouvidos de Marisa com a mesma generosidade com que salpicava mirtilos na massa das panquecas. Num dado momento, limpou distraidamente as mãos no avental amarelo, decorando-o com uma grande mancha roxa. Ficou parecendo um teste de Rorschach.

- Pena que você vai embora. Tem lugares lindos por aqui. Lago Chabot, Point Reyes, Yosemite... Bom, pelo menos está aproveitando o fim de semana. A turma da escola não quis sair com você e sua amiga? - Como o gato subisse na cadeira para roubar uma panqueca da mesa, ela brandiu a escumadeira e apressou-se em intervir: - Smokey, desce já daí! Bad, bad boy!

- Eles preferiram voltar ao Fishermen's Wharf, Mrs. Stevenson. Valentina e eu decidimos...

Marisa interrompeu-se para pegar o telefone que tocava no bolso do abrigo. Era Valentina, a própria.

- Bom dia! Pronta para outra? - ela já foi perguntando e, sem esperar pela resposta, anunciou: - Richard e Brian vão nos levar a uma feira de fetiches. Você tem o Guardian aí...? Ótimo. Leia a matéria na página 15. Passamos ao meio-dia para buscar você.

Feira de fetiches. Marisa lembrou-se do site que havia visitado antes da viagem. Apressou-se em apanhar o último exemplar do Bay Guardian no balcão da cozinha, abrindo-o na página indicada enquanto falava com Valentina.

A descrição da feira conjurava imagens sugestivas:

Uma vitrine de produtos e serviços para as fantasias eróticas mais ousadas do planeta. Gastronomia, música, role playing e mais de 50 expositores. A Leather Dream Fair promete trazer à cidade infinitas possibilidades de prazer. Além disso, sua grande festa de encerramento vai ser o pretexto perfeito para testar o arsenal da feira.

Marisa conversou mais um pouco com a amiga e logo desligou. Aí, subitamente animada, atacou a panqueca no prato à sua frente e terminou de ler a matéria.

A três quilômetros dali, num hotel do bairro histórico de Haight-Ashbury, Marco tomava o café da manhã na cama. Seu quarto ficava no último piso de um casarão vitoriano, com uma janela hexagonal que oferecia a vista das colinas ao longe. Decorado em estilo de época, exibia móveis de mogno, papel de parede creme com listras verdes e cortinas pregueadas da mesma cor. Um espelho oval, uma poltrona azul e um lustre de vidro jateado completavam a viagem no tempo.

Com a bandeja de comida no colo, Marco mordiscou o último pedaço de torrada e esvaziou o copo de suco de laranja. Aí pôs a bandeja de lado e espreguiçou-se dos pés à cabeça como um gato. Sorriu satisfeito. Era delicioso se dar ao luxo de sair da rotina. Em casa, antes de ir apressado para o trabalho, costumava comer uma fruta e tomar uma xícara de café encostado na pia da cozinha. Prezava mais as horas de sono do que os rituais matinais, essa é que era a verdade.

Zapeou os canais do pequeno televisor sobre o rack de madeira escura. Junto com o frigobar que ficava encaixado debaixo do móvel, era o único item moderno ali. Ah, e havia o telefone também: Marco esticou o braço até o aparelho na mesa de cabeceira e discou o número de Jeff. Queria checar se o amigo estava inteiro depois da noitada da véspera - a julgar pela voz rouca e pelo mau humor com que Jeff atendeu, pouco havia sobrado dele.

- Fazia tempo que eu não bebia assim - resmungou Jeff. - O que aconteceu no bar?

- Uma garota te fez homem.

O amigo emudeceu do outro lado da linha. Uma saraivada de martelos soou ao fundo. Depois uma enérgica lixa.

- Não brinca - ele disse. - O que aconteceu ontem? Quando tento lembrar, me dá um branco.

- Quer saber mesmo? Eu avisei para não beber demais, você encheu a cara e tive que levá-lo de táxi para casa. Por algum motivo obscuro, você não parava de cantar A Marselhesa. - Marco desviou o olhar da televisão e contemplou o céu azul no retângulo da janela. - Uma hora você vai ter que me explicar essa relação mórbida entre uísque e o hino da França. Mas chega disso. O dia está lindo. Por que não vamos até Monterey?

- Não posso sair daqui. Não confio nesse pintor. Agora mesmo ele está recolocando todas as portas dos armários.

Marco voltou a fixar a televisão. Mudou de canal e parou num noticiário. Franzindo o cenho, perguntou por que o pintor havia tirado todas as portas dos armários. Em resposta, Jeff exalou um interminável suspiro.

- Eu não quero falar sobre isso. É uma longa história.

- Bom, se cuida. Se precisar de alguma coisa, me avisa.

Era tudo que Jeff queria ouvir. Olhou a pilha de caixas que o aguardava nos fundos da sala coberta de lençóis empoeirados. Animou-se pela primeira vez naquela semana.

- Na verdade, amanhã vou montar os móveis do quarto no fim do dia. Uma ajuda seria bem-vinda.

- Então passo aí por volta das seis.

- Valeu, amigo. Você tem minha eterna gratidão.

- Eu me contento com uma pizza - replicou Marco, logo antes de outra saraivada de martelos.

Assim que desligou, ele pulou da cama. Não tinha certeza se queria passar o dia sozinho em Monterey e resolveu entrar no chuveiro para clarear as ideias. Despiu sua camiseta branca e já ia tirando a calça de moletom, quando o programa na tevê atraiu sua atenção. Era o final do noticiário, e o apresentador oferecia dicas de lazer para o domingo.

Pelo visto, havia muitas opções na cidade - talvez até mais convidativas do que uma excursão a Monterey.


VERMELHO: Uma História de AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora