MARY
A neblina da manhã pintava tudo de branco. Era exatamente como num dos meus sonhos de toca de coelho, no qual fico encurralada, suspensa numa nuvem, e não consigo acordar.
Então a sirene de neblina toca, as nuvens se desfazem em rendas, e eu vejo a Ilha Jar, espalhada ao longo do horizonte tal como uma das pinturas de tia Bette.
É então que sei com certeza que consegui. Que estou de volta. Um dos trabalhadores amarra a balsa no cais com uma corda grossa. Outro baixa a ponte. A voz do capitão vem pelo alto-falante.
- Bom dia, passageiros. Bem-vindos à Ilha Jar. Por favor, não se esqueçam de recolher todos os seus pertences.
Eu quase me esquecera de como aqui é bonito. O sol se ergue acima da água e ilumina tudo com sua luz amarela brilhante. Uma sugestão do meu reflexo na janela olha para mim: olhos claros, lábios separados, cabelo loiro, ondulado pelo vento. Não sou a mesma pessoa que era quando saí daqui, no sétimo ano. Estou mais velha, obviamente, mas não é só isso. Eu mudei. Quando olho para mim
mesma agora, vejo uma pessoa forte. Talvez até bonita.
Será que ele me reconhecerá? Parte de mim espera que não. Mas outra parte, aquela que deixou minha família para retornar, espera que sim. Ele tem de me reconhecer. Senão, qual seria o sentido disso?
Escuto o barulho dos carros parados na balsa preparando-se para sair. Há mais carros em terra, numa longa fila que vai até a entrada do estacionamento, esperando para embarcar na viagem de volta ao continente. Ainda resta uma semana de férias na praia. Afasto-me da janela, aliso o vestido leve de algodão, decorado com muitas linhas finas, e volto para o assento para pegar as minhas coisas. O assento ao lado do meu está vazio. Passo a mão por debaixo dele, tateando atrás do que sei que está ali. As iniciais dele. RT. Lembro-me do dia em que ele as entalhou com seu canivete suíço só porque lhe deu vontade.
Fico imaginando se as coisas mudaram na ilha. Será que a Milky Morning ainda faz os melhores
bolinhos de mirtilo? O cinema da Avenida Central ainda tem aqueles assentos de veludo verde cheios de calombos? Que tamanho terá agora o lilaseiro de nosso jardim?
É estranho me sentir como uma turista, porque os Zane moraram na Ilha Jar praticamente desde sempre. Meu tetravô projetou e construiu a biblioteca. Uma das tias de minha mãe foi a primeira mulher a ser eleita vereadora de Middlebury. O jazigo da nossa família fica bem no centro do
cemitério, no meio da ilha, e algumas das lápides, cobertas de musgo, são tão antigas que não dá para saber quem está sepultado ali.
A Ilha Jar é composta de quatro pequenas cidades. Thomastown, Middlebury, que é de onde eu venho, White Haven e Canobie Bluffs. Cada uma das cidades tem a sua própria escola primária, e depois todo mundo vai para a escola secundária da Ilha Jar. No verão, a população infla com os vários milhares de turistas. Mas apenas cerca de mil pessoas vivem aqui o resto do ano.
Minha mãe sempre diz que a Ilha Jar nunca muda. Ela é seu próprio pequeno universo. Tem algo aqui que faz as pessoas fingirem que o mundo parou de girar. Acho que isso é parte do charme do lugar e o motivo pelo qual as pessoas querem passar o verão aqui. Ou porque aqueles que resistem às mudanças enfrentam os problemas decorrentes de viver aqui o ano todo, da forma como a minha
família costumava fazer.
As pessoas gostam de que não haja nenhuma loja grande, shopping center ou restaurante fast-food na Ilha Jar. Papai diz que há cerca de 200 leis diferentes que tornam ilegal construir essas coisas aqui. As pessoas fazem suas compras nos mercados locais, os remédios, compram nas pequenas farmácias, que também são lanchonetes, as revistas e livros, em livrarias independentes.
Outra coisa que torna a Ilha Jar especial é que é uma ilha de verdade. Não há pontes ou túneis conectando-a ao continente. Além do aeroporto de uma pista, que só os ricos usam com seus aviões particulares, todo mundo e tudo o mais têm de ir e vir nesta balsa.
Pego minhas malas e sigo o resto dos passageiros para fora. O cais vai dar direto numa área de recepção. Um velho ônibus escolar dos anos 1940 com a inscrição TOUR DA ILHA JAR está parado na frente, sendo lavado. Um quarteirão adiante fica a Avenida Central, uma sequência de lojas de suvenires e lanchonetes. Acima dela ergue-se a grande colina de Middlebury. Leva um segundo para
eu encontrá-la, e tenho de proteger os olhos do sol, mas vislumbro o telhado vermelho inclinado da minha velha casa bem lá no alto.
Minha mãe cresceu naquela casa, junto com tia Bette. Meu quarto era o mesmo que fora de tia Bette, com vista para o mar. Fico imaginando se é onde ela dorme, agora que está morando ali novamente.
Sou sua única sobrinha, e ela não teve filhos. Ela nunca soube lidar com crianças, por isso me tratava como adulta. Eu gostava disso, fazia-me sentir crescida. Quando pedia minha opinião sobre as pinturas que fazia, o que eu achava delas, tia Bette ouvia realmente o que eu dizia. Mas ela nunca foi o tipo de tia que se senta no chão e ajuda a montar um quebra-cabeça, ou com quem eu podia fazer
biscoitos. E eu não precisava que ela fosse assim. Eu já tinha meu pai e minha mãe, que faziam essas coisas.
Acho que será ótimo morar com tia Bette, agora que estou mais velha. Meus pais me tratam como criança. O exemplo perfeito: ainda tenho de voltar para casa às dez, apesar de já ter 17 anos. Acho que depois de tudo o que aconteceu, faz sentido que sejam exageradamente protetores.
A caminhada até a casa é mais longa do que eu me lembrava, talvez por causa do peso das malas.
Mostro o polegar para os carros que passam de vez quando. Alguns dos locais dão carona na Ilha Jar. É algo aceito aqui, um modo de ajudar os vizinhos. Nunca tive permissão para pegar carona, mas pela primeira vez não tenho minha mãe e meu pai olhando por cima do meu ombro. Ninguém quer me dar carona, o que é uma droga, mas há sempre amanhã ou depois de amanhã. Tenho todo o tempo do mundo para pegar carona ou fazer o que quiser.
Sem perceber, passo direto pela entrada da minha casa e tenho de voltar. Os arbustos cresceram
muito e esconderam a casa. Não estou surpresa. Cuidar do jardim era tarefa de minha mãe, não de tia Bette.
Arrasto as malas pelos últimos poucos metros e olho para a casa. É uma construção colonial de três andares, coberta de telhas cinza de cedro, com venezianas brancas em cada janela e um caminho de pedras pelo meio do jardim. O velho Volvo bege de tia Bette está estacionado à entrada, coberto por uma camada de pequenas flores roxas.
O lilaseiro. Ele está mais alto do que eu considerava possível. E, apesar de muitas flores terem caído, os galhos continuam inclinados com o peso de outros milhões delas. Respiro tão
profundamente quanto posso.
É bom estar em casa.
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Olho Por Olho
ActionAlguma vez você já quis realmente se vingar de alguém que a ofendeu? Talvez uma ex-amiga que a apunhalou pelas costas, ou um namorado traidor, ou um estúpido da escola que a humilhou desde que você era pequena... Alguma vez você já sonhou em envergo...