MARY
Estou sentada na cama, olhando para um velho álbum de fotografias que encontrei no porão. Vou envelhecendo à medida que viro as páginas. Posando diante de um forte feito de cobertores com uma
lanterna acesa sob meu queixo. No balanço feito de pneu pendurado na árvore do quintal, meu cabelo quase branco por causa do sol. Eu e meu pai com montes de algas marinhas sobre a cabeça.
Praticando clarineta diante dos meus pais e de tia Bette na sala de jantar.
O álbum termina com uma foto minha em frente ao lilaseiro antes do meu primeiro dia de aula no sétimo ano. Estou na ponta dos pés, cheirando as flores.
Não é de admirar que Reeve não tenha me reconhecido essa manhã. Tem só um modo de dizer isso: eu era gorda.• • •
Todos estavam falando sobre o novo aluno bolsista. O Belle Harbor Montessori no continente era muito pequeno. Havia apenas 20 alunos na nossa turma do sétimo ano, e eu era a única da Ilha Jar.
Durante o almoço alguns dos garotos estavam debatendo quão inteligente era preciso ser para conseguir uma bolsa de estudos, quando Reeve entrou.
Todos o viram passar pela fila da comida. Minha amiga Anne se inclinou e disse:
- Ele é bem bonito, você não acha?
- Ele não é nada mal - sussurrei de volta.
Reeve era claramente mais alto que todos os outros na sala. Mas não era esguio, era musculoso...
podia se dizer que ele com certeza praticava esportes na sua antiga escola. Não tínhamos esportes na
Montessori. Não tínhamos nem recreação, a menos que se contassem as caminhadas pelo mato.
Nossa professora acenou para ele e mostrou onde nossa turma estava sentada.
- Ei - disse ele, num tom entediado, e se deixou cair numa cadeira vazia. - Eu sou Reeve.
Alguns dos garotos murmuraram um "ei" em resposta, mas a maioria não disse nada. Acho que nenhum de nós gostávamos de seu ar blasé. Ele não queria estar na nossa escola e provavelmente tinha muitos amigos na escola de onde viera.
Senti-me mal por ele. Reeve mal provou o sanduíche, calado. Deve ser difícil mudar para uma escola nova. Aquela era a única escola que eu conhecia. Eu frequentava a Belle Harbor Montessori desde o jardim de infância.
Quando o almoço terminou e todos levantaram, vi Reeve olhando em volta, sem saber onde colocar a bandeja. Inclinei-me para pegá-la e colocá-la no lugar. Não sei por quê. Acho que só para ser legal. Mas ele a tomou depressa antes de mim e disse num tom muito alto:
- Você não acha que já comeu o bastante?
Os garotos em volta começaram a rir. Acho que ri também, só pela surpresa da situação. Anne torceu o nariz. Não por simpatia. Foi um gesto banal de desagrado. E não foi para Reeve. Foi para mim.
Reeve foi quem mais riu. Foi o primeiro a deixar a mesa, e todos o seguiram, apesar de ele não ter como saber onde era a nossa sala. Elebdeixou a bandeja na mesa.
Acabei jogando fora o lanche dele junto com o meu.
Antes de Reeve, eu era uma das meninas inteligentes, especialmente em matemática. Eu era a tímida, mas amistosa. Um pouco desajeitada no trato social, sem dúvida. A menina de cabelo loiro comprido da ilha. Mas, depois de Reeve, passei a ser a gorda.
Fechei o álbum. Não sou mais aquela menina. E isso já faz muito tempo. No entanto, voltar para a Ilha Jar, com Reeve, com minhas velhas fotos e bichinhos de pelúcia e tudo o mais; isso faz tudo parecer muito recente.
Ouço tia Bette lá embaixo, lavando a louça em silêncio.
Nosso jantar esta noite foi estranho, para dizer o mínimo. Essa manhã me imaginei contando a tia Bette cada detalhe do meu épico primeiro dia, a expressão no rosto de Reeve quando me visse novamente, sua tentativa de falar comigo e descobrir onde estive nos últimos quatro anos. Ela me
deixaria tomar uma taça de vinho e faríamos um brinde ao início de um grande ano letivo.
Já que nada disso aconteceu, não havia nada para contar a tia Bette. Nem preciso dizer que eu não estava com fome. Teria sido rude levantar da mesa, por isso fiquei ali sentada em silêncio enquanto ela enrolava espaguete no garfo e lia alguma revista de arte.
Eu me sinto vazia. Oca. Preciso falar com minha mãe e meu pai, ouvir a voz deles. Eles provavelmente me dirão para voltar para casa, e posso deixar-me convencer.
Passo os cinco minutos seguintes andando pelo quarto com o braço erguido, tentando conseguir barras suficientes no celular para telefonar para eles. Não consigo sinal. Quando vivíamos aqui antes, o serviço de celular praticamente inexistia na Ilha Jar. Havia uns poucos locais aleatórios onde
era possível conseguir sinal, perto dos faróis ou às vezes no estacionamento da igreja luterana, mas a maior parte da Ilha Jar era área livre de celular. Acho que isso não mudou.
Há um telefone lá embaixo na cozinha, mas não quero falar com meus pais na frente de tia Bette.
Eu poderia começar a chorar.
Ouço tia Bette subir a escada. Olho pela fresta da porta e a vejo passar e ir para seu quarto.
Acho que poderia tentar falar com ela. Eu costumava confidenciar-lhe todo tipo de coisa. Sempre que ela nos visitava no verão, descíamos a colina para comprar chocolate na Avenida Central. Até em agosto. Ela me contava coisas que meus pais ficariam bravos se soubessem. O mês que ela
passou morando em Paris com um homem casado, a série de pinturas que fez de si mesma nua. Tia Bette viveu um milhão de vidas. Ela poderia ter um bom conselho para me dar.
Tia Bette já está na cama. Os olhos estão fechados. Mas acho que me ouviu, porque eles se abrem subitamente.
- Mary?
Entro no quarto e me ajoelho junto à cama.
- Você está dormindo?
Ela faz que não com a cabeça e pisca.
- Acho que não. Estou?
Apesar de estar a ponto de chorar, dou risada.
- Estou incomodando você?
- Não! Por favor! - Ela se senta. - Você está bem?
Respiro fundo e tento me conter.
- É estranho estar de volta.
- Sim. É... é claro que é.
- Não sei se consigo me encaixar, depois de tudo que aconteceu.
- Esta é a sua casa. Onde mais poderia ser seu lugar? - diz, em voz baixa.
- Em lugar nenhum, eu acho.
- Senti sua falta, Mary. - Um pequeno sorriso surge em seu rosto. - Estou feliz por você estar aqui.
- Eu também - digo, mentindo. Então volto para meu quarto e vou para a cama.
Leva muito tempo até eu conseguir dormir.
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Olho Por Olho
ActionAlguma vez você já quis realmente se vingar de alguém que a ofendeu? Talvez uma ex-amiga que a apunhalou pelas costas, ou um namorado traidor, ou um estúpido da escola que a humilhou desde que você era pequena... Alguma vez você já sonhou em envergo...