Capítulo 10

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                          MARY
Estou na aula de química, e minha cabeça gira por causa do esforço para entender o que o Sr. Harris colocou na lousa. Ele escreveu um monte de números e letras, tentando explicar o processo de notação científica. Pelo que entendi é uma forma mais simples de lidar com números infinitos. Só que eu estou infinitamente perdida. Pensei que estava numa aula de ciências, e não de matemática.
Mas o resto do pessoal na classe parece não ter problemas para acompanhar o que o Sr. Harris está dizendo. Eles assentem e escrevem em seus cadernos. Tem sido assim o dia todo, em todas as aulas, menos na ginástica. Parece que o pessoal do segundo ano da Ilha Jar sabe mais que eu, e, tecnicamente, eu devia ser uma formanda. Sempre tive notas altas na minha escola antiga. Então minha vida foi toda bagunçada e, desde a coisa com Reeve, fui ficando sempre para trás. E, se a escola decidir me atrasar um ano? Vou ser uma segundanista com 18 anos? Não. Isso não pode acontecer.
Quero apoiar a cabeça na mesa e nunca mais acordar. Olho para o cara ao meu lado. Toda vez que o Sr. Harris se vira para escrever na lousa, ele entalha alguma coisa na mesa com a ponta de uma chave. Chego mais perto para ver. O entalhe diz FODA-SE.
Depois do primeiro dia de Reeve na minha escola, tentei ficar longe dele. O que não foi fácil, porque nós dois íamos e vínhamos juntos na balsa todos os dias. Reeve sentava lá embaixo com os outros passageiros, e eu ficava fora, no convés. Mesmo quando o tempo começou a ficar frio, eu viajava do lado de fora. Não era problema para mim. Gosto de sentar no convés, sempre gostei. Mas daí um dia quando estava chovendo, ele me viu indo para fora.
— Ei, Big Easy — chamou-me. — Vem aqui um instante.
Big Easy foi o apelido que Reeve me deu depois de uma aula de Estudos Sociais sobre Nova Orleans e o Mardi Gras. O apelido pegou muito depressa entre o pessoal da classe. A única pessoa que usava meu nome de verdade na Montessori era nossa professora. O resto me chamava de
Big Easy.
Quem ia querer tomar o lanche com Big Easy? Ou ser dupla de ciências, ou ir dormir lá em casa? Ninguém. Eu também não ia querer ser minha amiga. Então como poderia condenar Anne por me abandonar? Eu não podia, mas ainda assim doía.
Lembro exatamente como a voz dele soou naquela manhã. Meio aborrecido. Imaginei se ele percebera que eu estava lá, se pensou em mim lá fora na chuva só para ficar longe dele. Se era por isso que me chamara. Porque se sentia mal.
Eu queria poder voltar no tempo e me empurrar por aquela porta para a chuva. Mas não. Eu fui até ele, como se Big Easy fosse meu nome.
— Oi, Reeve — disse eu, como se fôssemos amigos. E sorri também. Eu era carente. Eu era solitária.
Reeve olhou para mim lá de onde estava sentado. Depois de um ou dois segundos, ele disse, com a voz baixa:
— Dê um passo para a direita.
Fiz o que ele disse.
Reeve deslizou para fora do assento, e o assento se virou para cima, da mesma forma como fazem as poltronas de cinema. Daí ele se abaixou diante da cadeira, de costas para mim, e tirou algo do bolso.
— O que você está fazendo? — sussurrei.
Reeve não respondeu, mas vi os ombros dele começarem a mover-se para cima e para baixo. Ouvi som de raspar.
Olhei por cima do meu ombro. Atrás de mim a mulher velha que vendia doces estava lendo um jornal, esperando algum cliente. Acho que ela sentiu que eu estava olhando, porque ergueu o rosto e sorriu para mim. Forcei um sorriso e me virei, fingindo que olhava a tempestade pela janela.
Foi quando percebi. Reeve estava me usando para esconder-se.
Eu não queria problemas. Mas estava me sentindo… útil.
Quando ele terminou, voltou a sentar-se na cadeira. Ele abriu e fechou o canivete com uma mão.
— Roubei isso do meu irmão Luke — disse-me.
Eu não sabia o que fazer, se devia ir para fora, mas Reeve acrescentou com facilidade.
— Se você quiser, eu mostro para que serve cada uma das lâminas.
E ele mostrou, durante o resto da viagem.
Quando a balsa chegou perto do cais, Reeve pegou suas coisas e saiu para ir ao banheiro. Fiquei esperando ele voltar. Como não voltou, fui até a janela. Reeve já estava em terra, indo pela rua na direção da escola.
Não tive pressa, caminhei devagar, tomando cuidado para não me aproximar dele.
O sinal toca, e a sala vira uma balbúrdia no mesmo instante, como se a classe inteira estivesse
segurando a respiração por 45 minutos, mas agora podiam falar uns com os outros. Todos se juntaram
nos grupos de amigos e foram para o corredor, deixando-me para trás.
Não é que eu esperasse entrar na escola secundária da Ilha de Jar e tornar-me popular instantaneamente. Não tenho delírios nem nada assim. Na Montessori, eu não tinha um milhão de amigos. Mas havia muitos colegas que falavam comigo. Eu tinha um lugar onde me sentar no intervalo. Minha vida ia muito bem até Reeve aparecer.
Por que eu voltei? O que eu queria ali exatamente?Levou um longo tempo para eu me recuperar, mas consegui. Fiquei melhor. Mas subitamente é
como se os últimos quatro anos não tivessem acontecido, e estou sentindo todas as mesmas coisas terríveis em relação a mim mesma que sentia antes. Podia estar em casa agora, com minha mãe e meu pai. Em vez de estar aqui, rodeada de lembranças ruins e do garoto que tornou minha vida um
inferno.
Então é isso.
Eu vou embora.
Assim que tomo a decisão, sinto-me muito mais leve. Pego minhas coisas. Caminho pelo corredor e vejo Reeve lá no final, tão convencido e posudo como sempre foi, indo para onde quisesse ir.
Perfeito.
Sei exatamente o que vou fazer. Ontem ele me pegou despreparada, mas hoje estou pronta. Vou chegar bem perto dele e dizer meu nome, meu nome de verdade, bem alto. Fazê-lo ver que não acabou comigo. Estou aqui. E depois vou jogar um beijo para ele e acabar com este capítulo da minha vida de uma vez por todas. Sem nenhum arrependimento. Esse não é um jeito bom de viver.
Minha adrenalina está fluindo quando acelero o passo e abro caminho entre as pessoas no corredor para ir até ele.
— Reeve! — grito para a escada.
Mas ele não se vira. E não tenho como chegar mais perto. Há tanta gente entre nós dois. Uma barreira de gente.
— Ei, Reeve! — chamo novamente, abrindo caminho à força. Ele continua não me ouvindo. — Reeve! — Eu inspiro profundamente. — REEVE!
Uma lufada de alguma coisa passa, vento talvez, e sua força faz todas as portas dos armários fecharem-se ao mesmo tempo. O som enche o corredor como um grande trovão metálico.
Reeve para e olha ao redor. Todo mundo faz o mesmo.
— O que é que foi isso? — alguém diz.
— Como eu vou saber?
— Uma tempestade?
— Cara, nós acabamos de sair do ginásio, está fazendo sol lá fora.
Tudo fica em silêncio por mais um segundo, daí toca o segundo sinal. Isso faz a vida voltar ao seu lugar. Todos voltam a cuidar da própria vida.
Giro e começo a andar na outra direção. Eu tenho de sair daqui. É só nisso que penso.

Olho Por OlhoWhere stories live. Discover now