KAT
O céu está negro. Baixei o teto no conversível do meu pai, e o relógio do painel diz que faltam 15 minutos para as duas da manhã.
Verifico o celular uma última vez antes de jogá-lo no assento de trás. Nenhuma ligação, nenhuma mensagem. Ela não virá.
Por que sou assim tão idiota?
Eu devia ter guardado essa ideia de vingança só para mim. Vingança é para ser uma coisa solitária. Acho que ouvi isso em algum lugar. E não sei que ajuda Lillia poderia me dar. A mente dela não pode ir para os lugares negros que a minha vai. Ela é pura demais para isso. E mesmo com
o que quer que seja que esteja acontecendo entre Lillia e Rennie, não há chance de Lillia jamais traí-la. Na verdade, conhecendo Lillia, ela provavelmente está lendo meu torpedo em voz alta, e Rennie está morrendo de rir. Eu me deixei levar, e veja só agora. Estou acabada antes mesmo de começar.
Que se dane. Vou voltar para casa e trabalhar em minha aplicação antecipada para a Oberlin.
Essa é a única coisa que me fará atravessar este ano, o pensamento de finalmente sair desta ilha de uma vez.
Entro no estacionamento da balsa para fazer a volta. As luzes estão apagadas, o lugar está vazio, exceto por uma garota sentada na beira da calçada. Ela está com os cotovelos nos joelhos, a cabeça nas mãos e o cabelo loiro descendo por um dos ombros.
Penso em passar direto por ela, mas alguma coisa me faz diminuir. Quando me aproximo, vejo que é a garota do banheiro.
- Garota do banheiro - digo e paro.
- Meu nome é Mary - diz. Ela está mastigando uma ponta do cabelo.
- Eu sei - minto. - Estava brincando. - Balanço a cabeça e começo novamente. - O que é que você está fazendo aqui assim tão tarde?
Os olhos dela estão muito abertos e agitados.
- Eu tenho de sair desta ilha.
- Bem, você sabe que são quase duas da manhã, certo? Não vai haver outra balsa até amanhã.
Você perdeu a última por, deixe-me ver, umas três horas.
Mary não diz nada. Ela só olha para o cais. Não dá para distinguir água do céu. Está tudo negro.
- Acho que estou enlouquecendo.
Ela diz isso, e eu honestamente acredito. Essa garota é totalmente estranha. Mas preciso ir até oiate clube. Por causa da chance minúscula de Lillia aparecer, eu preciso ir até lá.
- Você quer uma carona até em casa ou algo assim? - pergunto, esperando que a resposta seja não.
- Eu vou apenas esperar. Talvez eu reúna coragem para ir embora de manhã.
- Você vai ficar sentada aqui a noite toda?
- São só mais algumas horas. E depois eu nunca mais vou ter de ver este lugar.
- Onde estão suas coisas? Você não trouxe nada quando se mudou para cá?
- Eu... eu pego tudo depois.
Isso é maluquice. A garota é mesmo cheia de loucuras.
- Isso tem a ver com Reeve?
Mary baixa os olhos.
- Tudo tem a ver com Reeve.
Estou para dizer ele que se dane, mas antes que fale vejo o Audi prateado de Lillia passar voando pela rua e virar na primeira à direita, que leva até o estacionamento do iate clube. Não posso
acreditar. Ela veio. Ela veio mesmo.
- Suba - eu digo a Mary, porque posso ser uma vaca, mas não vou deixá-la aqui sozinha no escuro.
- Eu...
- Depressa!
Por um segundo Mary parece que vai discutir comigo. Se ela fizer isso, eu dou o fora. Não tenho tempo para ficar pajeando a moça. Lillia pode nem sair do carro se não me vir por lá. Mary hesita, e daí tenta abrir a porta, mas não consegue.
- Está trancada.
- Solte a maçaneta - digo-lhe, e empurro o botão da trava, mas, quando Mary tenta de novo, a porta não abre. Deus.
- Apenas salte para dentro!
- Quem você está perseguindo? - pergunta quando saio a toda velocidade para encurtar a distância até as luzes traseiras do carro da Lillia.
Não respondo. Apenas dirijo.
Quando entramos no estacionamento, Lillia está ao lado do carro. Veste um moletom justo com capuz, short de pijama com corações vermelhos e rosa e chinelos. O cabelo está preso num longo rabo de cavalo. Penso, pela forma como o luar reflete, que o cabelo dela está molhado. Ela deve ter acabado de tomar banho. Isso é uma das coisas estranhas de Lillia. Ela sempre tomava banho toda noite quando era pequena. Acho que algumas coisas não mudam.
- Você está atrasada, Kat - diz Lillia. Então ela vê Mary comigo, e sua mão se contrai ao redor das chaves.
Saio correndo do carro e vou até ela. Estou animada e aliviada por Lillia estar aqui, mas tento esconder.
- Ela precisava de uma carona - sussurro. - Não se preocupe, está tudo bem.
- Kat... - Lillia me olha feio. - Não vou dizer nada na frente dela!
Acho que Mary pode nos ouvir, porque ela diz:
- Está tudo bem. Eu posso ir - e salta do carro.
Ergo a mão, pedindo a Lillia que me dê um segundo, e me viro para Mary.
- Você vai embora da Ilha Jar amanhã cedo como uma menininha assustada?
- Eu estou assustada. Estou completamente assustada.
- Por causa de Reeve Tabatsky? - Agora estou realmente brava. Sem dúvida nenhuma, essa menina precisa se encontrar. - Ele não é merda nenhuma. Eu não vou deixá-lo tocar em você.
- Não é isso que me preocupa. - Mary cobre o rosto com as mãos. - Sou eu. Eu sou o problema. Eu... eu apenas não consigo superar. Não consigo seguir adiante.
- Bem, isso é claro. Você não teve um encerramento adequado. O errado não foi transformado em certo. Reeve nunca teve o que merecia.
Lillia balança a cabeça.
- Esquece. Eu estou fora. - Ela aperta o botão do alarme do carro. Os faróis piscam e as travas se soltam.
Eu vou até o carro dela e me encosto na maçaneta, de modo que ela não pode abrir a porta.
- Não saia agora. Você não teria vindo até aqui se não quisesse pegar Alex tanto quanto eu quero pegar Rennie.
Mary se aproxima lentamente de nós.
- O que Alex fez a você?
Lillia hesita antes de responder.
- Ele não me fez nada. Ele fez algo à minha irmã.
Sim, a mim e a Nadia. Não que eu esteja magoada nem nada assim. Foi só um caso idiota. Poderia ter sido mais, mas ele ferrou tudo. Eu já esqueci. Quase.
- Eu lamento. Eu não queria mesmo me intrometer. Eu vou embora. Escute, eu juro que não vou contar nada a ninguém. Você pode confiar em mim. Eu provavelmente sei mais do que qualquer pessoa nesta ilha como esse tipo de coisa pode arrasar você. Eu só... eu acho legal vocês duas fazerem algo a respeito - diz Mary, e depois se vira e começa a caminhar de volta para a balsa. -
Boa sorte!Lillia e eu nos olhamos.
- Espere! - chamo. Mary se vira. - Você quer participar, Mary? Você nos ajuda, e nós a ajudamos com Reeve. - Estou com medo de olhar para Lillia, porque sei que ela decerto está
furiosa comigo agora. Mas ela não diz nada. E também não vai embora.
- Por que vocês fariam isso? Vocês nem me conhecem.
Mary me lança um olhar intenso, impassível, e isso me atinge. Levo um segundo para me recuperar.
- Não preciso conhecê-la para saber que você está totalmente arrasada pelo que aconteceu, sei lá, anos atrás. E você não terá isso de graça. Terá de sujar as mãos também. Mas vamos estar nisso juntas. Nós três.
Mary olha para mim e para Lillia por um longo momento. Tão longo que começo a ficar ansiosa.
Por fim ela diz:
- Se vocês me ajudarem a pegar Reeve, eu faço qualquer coisa que quiserem.
Lillia não se move. Seus lábios estão contraídos, ela balança a cabeça.
- Eu não sei.
- Pense nisso - digo a ela. Estou tão empolgada, estou quase dando pulos. - Mary é nova aqui.
Ninguém a conhece e, obviamente, ninguém desconfia dela. Além do mais, com mais uma pessoa, será mais fácil para nós duas.
- Ela não parece convencida. Ergo as mãos para o alto e digo: - Você confiou em mim o suficiente para vir aqui, não foi? Tudo que tem a fazer é confiar um pouco mais. Estou com uma sensação boa sobre isso.
- Então vamos nos vingar de Rennie, Alex e agora Reeve? Você está basicamente me pedindo para acabar com todo mundo no meu grupo - diz Lillia finalmente, mordendo o lábio.
Talvez você não devesse ser amiga desses imbecis é o que está bem na ponta da minha língua.
Mas engulo isso e escolho a diplomacia.
- Eu entendo - digo, assentindo. - Você é quem tem mais a perder. Sei disso. Então vamos cuidar de Alex primeiro. Vamos conversar em algum lugar mais reservado. Meu barco está ancorado ali adiante.
- De jeito nenhum, Kat - diz Lillia, imediatamente.
- Você ainda não aprendeu a nadar, Lil? - provoco.
Ela ruboriza.
- Eu só não vejo por que irmos para o barco.
- Será mais seguro falarmos na água - digo-lhe. - Lá não haverá chance de ninguém nos ouvir.
Lillia gira os olhos para cima, descruza e abre os braços, indicando tudo em volta.
- E quem é que vai nos ouvir aqui?
Lillia Cho. Sempre achando que sabe tudo.- Muitos homens ricos trazem as amantes aqui - digo. - E também os seguranças. E a polícia.
Quer dizer, se você quer correr o risco de ser presa, eu...
- Então talvez você devesse ter escolhido um lugar melhor - devolve Lillia.
- Vamos até o barco - diz Mary. - Quer dizer, já que estamos aqui mesmo.
- Está bem - grunhe Lillia.
Eu lidero a caminhada pelo cais, com a lua atrás de mim. Mary vem em seguida, e Lillia alguns
passos atrás.
Enquanto andamos, minha mente fica repassando as possibilidades. Como faremos isso, qual é o melhor modo de começar. Eu já pensara um pouco no assunto, para o caso de Lillia aparecer esta noite. Mas agora que Mary também está no grupo, tenho de fazer alguns ajustes rápidos. Tudo que sei é que preciso parecer preparada, por causa de Lillia, para deixá-la tranquila. Essa garota é mais assustada que um gato num temporal. Um errinho, e ela dá o fora.
Quando Mary pergunta se sou dona de um desses barcos, apontando para os iates grandes, eu mal a escuto. Ela tem de perguntar de novo.
- Não exatamente - digo, meneando a cabeça.
Como trabalho no clube, posso deixar meu barco aqui sem pagar nada. Mas não aqui com esses iates, é óbvio. O meu está ancorado lá atrás das bombas de combustível numa parte antiga do cais, onde meu chefe deixa os barcos velhos ou avariados que ele compra bem barato para retirar peças.
- Tenham cuidado - digo-lhes. - As tábuas desse deque estão meio podres, e há muitos pregos enferrujados escapando pelas rachaduras. Acho que ainda tenho o pedaço de um preso no salto do
meu sapato. Um idiota entrou depressa demais com o iate dele e fez uma onda tão grande que me fez cair do meu barco.
- Que droga! - disse Mary.
Concordo com um movimento de cabeça.
- E ele mal se desculpou. Os ricos nunca pedem desculpas.
Lillia gira os olhos para cima, mas se mantém calada.
Tiro a lona que está cobrindo minha pequena lancha, dobro-a e a coloco na minúscula cabine na frente. Já faz um bom tempo desde que a tirei da água pela última vez. Acho que a última vez foi em junho, o que é maluco. Mas a questão é que Alex e eu sempre ficávamos neste barco, porque ele tem uma geladeira para manter as bebidas geladas e assentos de couro que reclinam, e um ótimo sistema
de som. Por alguma estranha razão isso me faz sentir culpada. Por esquecer quem eu era antes de
ficar com ele. As coisas que costumavam ser importantes para mim. Arrumar meu barco, passar o
tempo com os amigos de verdade. Nunca pensei que seria uma dessas garotas, daquelas que comprometem quem são por causa de um cara. Especialmente um canalha de duas caras como Alex Lind.
- Entrem - digo, prendendo o fio do holofote à bateria. Ele emite um raio brilhante de luz na noite, iluminando o topo das ondas. Perfeito. Lillia coloca um pé no chão do barco e congela quando ele se inclina. Então ela pula para fora como um coelhinho assustado. Ela quase colide com Mary, que também parece nervosa. Cruzando os braços, Lillia diz:
- Vamos conversar aqui mesmo.
- Eu ando de barco desde que tinha idade suficiente para virar a direção, pelo amor de Deus! Eu me sinto mais segura dirigindo este barco do que um carro - digo, rindo.
- Eu disse que não vou entrar nessa coisa - declara Lillia. - Ou conversamos aqui fora ou eu vou embora.
- Diva - murmuro muito baixo, depois solto o fio do holofote e volto para o cais.
Nós três sentamos nas tábuas formando um semicírculo.
Nesse momento percebo subitamente que já venci. Porque a melhor amiga de Rennie está sentada aqui e agora, dizendo que me ajudará a acabar com ela. E Alex também vai dançar. Não me importo com Reeve, mas vai ser legal vê-lo receber o que merece. É como uma dessas ofertas de três pelo
preço de um.
Estico as pernas para a frente.
- Temos de determinar algumas regras. Primeiro, acho que cada uma de nós tem de participar nos três atos de vingança. Assim ninguém pode recuar nem acusar as outras.
- Obviamente - diz Lillia.
Olho para ela, mas continuo falando:
- Segundo, não podemos ser vistas conversando em público. Nunca.
- Sim. Acho que isso faz sentido - diz Mary, acenando com a cabeça.
- De fato, acho que até mandar mensagens pelo celular umas para as outras é arriscado demais.
Lillia, e se Rennie, por exemplo, pegar seu celular e vir meu número?
Lillia baixa os olhos.
- Não que Rennie viva fuçando no meu celular, mas, sim, acho que você tem razão. Temos de ser cuidadosas.
- Temos de ser mais que cuidadosas - digo. - Ninguém pode jamais saber o que vamos fazer.
O que fizermos juntas viverá e morrerá conosco. - Limpo a garganta, porque essa é a parte mais
importante. - E, se vamos mesmo fazer isso, ninguém pode desistir na metade do caminho. Se for para entrar, é para ir até o fim. Até nós três conseguirmos o que queremos. Senão, bem... você pode se considerar a caça. A estação de caça vai abrir, e nós teremos muita munição para usar contra você. Se você não puder jurar que irá até o fim, então é melhor fingir que esta noite não ocorreu.
Mary assente primeiro, e depois Lillia faz o mesmo. Eu sorrio porque, caramba, estamos mesmo
indo em frente.
- Então está bem - digo. - Parece que está combinado. Agora temos de decidir o que faremos com Rennie, Alex e Reeve.
- Alex primeiro - corrige Lillia.
Nós nos entreolhamos. Ninguém diz nada.
- Então qual é o plano? - pergunta Lillia.
- Não espere que eu faça todo o trabalho pesado - digo, na defensiva. - Eu só pensei nas regras!
Lillia comprime os lábios.
- Você está falando sério? Eu pensei que você tinha um plano. Eu imaginei que você já teria, sei lá, um caderninho com o nome de todos que você odeia e uma lista de coisas que fará para se vingar deles. - Ela parece mesmo desapontada, o que me dá uma estranha sensação de orgulho.
Começo a falar de improviso.
- Bem, por exemplo, Alex é obcecado pela SUV. Podemos pichar o carro, mexer no motor...
- Isso não é grande o bastante - interrompe Lillia.
- Ele tem um bicho de estimação ou algo assim? Nós podemos sequestrá-lo... e matá-lo! - sugere Mary.
Lillia e eu trocamos um olhar de horror enquanto Mary dá risadinhas.
- Eu estava brincando sobre esta última parte. Eu amo animais!
Vou em frente.
- Nós podemos hackear o computador da escola e mexer nas notas dele. Mexer tanto que a única
faculdade que o aceitaria seria a Faculdade Pública da Ilha Jar. O pai vai acabar com ele se não entrar numa das universidades da Ivy.
Lillia suspira.
- Eu não sei hackear coisa alguma, e duvido que você saiba, Kat. E você, Mary?
Mary faz que não com a cabeça.
- Acho que tenho uma ideia melhor - diz Lillia. Começo a ficar eriçada, mas ela continua. - Quero dar um jeito para que nenhuma outra garota da Ilha Jar jamais queira ficar com Alex. Então... que tal fazermos isso acontecer? - Tem algo na forma como Lillia diz isso. Inclinada para a frente no escuro, os olhos bem abertos e calmos. Ela está falando muito sério.
- Isso mesmo! - Bato palmas, sem conseguir me conter.
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Olho Por Olho
ActionAlguma vez você já quis realmente se vingar de alguém que a ofendeu? Talvez uma ex-amiga que a apunhalou pelas costas, ou um namorado traidor, ou um estúpido da escola que a humilhou desde que você era pequena... Alguma vez você já sonhou em envergo...