23. Paraíso artificial

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Capítulo dedicado ao K., leitor que vir a noite lendo meu livro hahaha

            Nunca pensei que morrer fosse tão difícil assim, até de fato atravessar para o outro lado do caminho. Agora, estou aqui, analisando a plenitude da alma quando finalmente descansa em pastos verdejantes. Face a face, observo-me dentro do caixão lacrado e mesmo coberto pelo véu negro, ainda sinto a adrenalina da morte segurando em mim. É triste assistir como todos os sonhos e projetos terminam numa cova rasa de cemitério. Os planos para uma vida perfeita ao lado de Enzo morreram, mas eu mesmo já sabia que felicidade não é para mim. Não me julgue pelas minhas escolhas, não é que a depressão tenha despertado isso em mim. Sou apenas realista e sei que, por mais que tente, é impossível viver uma vida gay plenamente feliz na conjectura familiar e social em que eu estava inserido.

Ao lado do caixão, observei minha mãe ainda chorando, a questão não era que ela chorava por minha morte e sim porque eu era gay. Ouvi-a explicar para uma senhora, vizinha nossa, que o caixão fora lacrado porque meu rosto ficou desfigurado no acidente de carro. Aproveitei que ninguém mais estava perto da minha mãe e fui até lá. Eu usava um vestido preto longo e um véu negro cobrindo todo meu rosto, assim ninguém me veria.

¾ Dá pra chorar mais!? Senão assim ninguém vai acreditar que eu estou morto ¾ Sussurrei no ouvido dela quando nos abraçamos.

¾ O que você está fazendo aqui? Quer acabar com o plano? ¾ sussurrou de volta, furiosa.

¾ Só quis ver quem viria ao meu enterro. Já estou indo embora. Chore!

Soltamo-nos de um acalorado abraço e fui-me embora. Até que deu bastante gente no meu enterro. Dos meus amores, Enzo era o único que estava lá. Chorando. Tive tanta pena, mas ele não poderia saber a verdade. Seria melhor que ele pensasse que morri, finalmente eu o deixaria em paz para viver sua vida.

Enzo havia levado flores: rosas vermelhas. Era engraçado, pois me recordo da segunda vez que namoramos e ele disse que não era do tipo de namorado que dava flores e eu respondi "fodam-se suas flores!". E agora estava fazendo o contrário do que havia prometido.

Talvez seja um pouco estranho entender o que está realmente acontecendo por aqui, mas vamos por partes para que ninguém se engasgue com tantas informações. Primeiro: Tomei veneno. Fiquei estatelado no chão enquanto meu corpo caminhava diretamente para o fim. Eu tinha plena consciência do meu ato e sabia que não haveria como voltar atrás. Mas de que me adianta viver daquela maneira? A vida era, na verdade, o inverso de mim.

Acontece que pessoas inconvenientes não conseguem me deixar em paz. Adivinha quem apareceu na minha casa cinco minutos depois de eu ter tomado veneno? Sim, Bárbara. Como ninguém atendeu a campainha e ela sabia que eu ficava sempre em casa naquele horário, meteu a mão na maçaneta e me encontrou estatelado no chão, suicidado. A garota ficou tão apavorada que disparou a gritar como se aquilo pudesse ajudar. Segundos depois, ajoelhou e sentiu meus batimentos pelo pulso e agradeceu por eu ainda estar vivo. Vivo!? Tratou logo de ligar para a ambulância e depois para os meus pais. No hospital, os médicos fizeram uma lavagem estomacal em mim e eliminaram todos os resíduos do veneno. Meus pais foram autorizados a entrar no quarto uma hora depois, quando acordei. Minha mãe estava chorando e papai esboçava um semblante triste. Me olhavam como se eu fosse o quebra-cabeça mais difícil de montar que já tinham visto.

¾ Pode me explicar o que aconteceu? ¾ perguntou minha mãe num tom arrogante.

¾ Calma, Elisa! ¾ meu pai acalmou mamãe e olhou para mim ¾Por que tentou o suicídio, filho?

¾ Por que eu sou gay e não tem como fugir disso.

¾ E quem está mandando você fugir disso? ¾ perguntou meu pai, nós nunca havíamos conversado abertamente sobre esse assunto.

¾ Eu mesmo ¾ e minha mãe!

De certa forma, eu não gostaria que todas aquelas pessoas que já conheci soubessem abertamente da minha sexualidade. Muitos iriam lidar de forma tranquila e madura. Mas muitos outros também, com mente fechada e pensamento rudimentar, iriam me menosprezar e debochar de mim.

¾ Acha que a morte resolve? ¾ indagou Elisa.

¾ Sim.

¾ Há outras alternativas, Pietro ¾ comentou papai ¾ Só precisamos encontrar a melhor delas.

¾ Eu só conseguiria viver feliz a uns mil quilômetros daqui, no mínimo ¾ brinquei, rindo, e isso me fez recordar que estava numa maca usando roupas de doente. Aquela roupa era tão folgada que eu me sentia um legítimo balão ¾ Quero morrer para todo mundo.

¾ Santa Catarina está bom?

¾ Do que você está falando, pai?

¾ Você pode fugir para Balneário Camboriú, meu primo também é gay e mora lá. Se dariam muito bem...

¾ Murilo! Não acredito que está falando isso! ¾ repreendeu minha mãe, sempre o lado sério da família, preocupada com nossa reputação.

¾ Adorei a ideia! ¾ fiquei animado com a alternativa, recomeçar minha vida no sul lugar repleto de gente linda, loira e do olho azul. Vou me sentir em casa. ¾ Mas não se preocupe que não mancharei o nome da família, quero fingir que morri.

E minha mãe que pareceu morrer quando tive a ideia.

¾ Ah, e como pretende fazer isso? ¾ ela perguntou.

¾ Precisarei do seu carro, pai. Vou explicar o plano, chamem Bárbara também. Serão os três cumplices do meu segredo. Falsificamos uma certidão de óbito e meu pai deu um jeito de bater o carro do lado do carona. Para o mundo, eu morri. Contaram a todos que o acidente foi feio e meu rosto ficou transfigurado. O caixão não poderia ser aberto. Após meu enterro eu viajaria para o sul para viver minha vida nova.

Vida nova...

Uma semana depois, descobri que não tinha coisa melhor do que aquele paraíso artificial. A praia, o sol, a areia... Era maravilhoso mergulhar numa das praias mais lindas do país e sair como se eu estivesse com metade do meu peso. Eu me sentia finalmente livre!

Depois de me libertar das artimanhas e cobranças do amor, me senti mais feliz do que nunca. Talvez a teia complexa de relacionamentos que criei acabaram me sufocando e me transformando numa presa.

Agora, o vazio que preenche minha alma é tão grande quanto a alma que outrora preenchia meu vazio. Mas pela primeira vez, acho que estou conseguindo me curar da ausência de Enzo. Não quero mais ouvir falar de amor...

Fiquei ali, usando meus óculos de sol e minha sunga, descansando deitado na cadeira de praia como eu fazia todas as tardes depois de correr. Com meu celular tocando rádio. Naquele momento tocava "How long will I love you?" num volume bem calmo. Observava meu paraíso artificial enquanto o garçom do quiosque trazia meu refrigerante. Ele era um loirinho do olho verde tão fofo e lindo.

¾ Mais alguma coisa, senhor?

¾ Sim. Você na minha cama. Topa? ¾ sorri através dos óculos.

Ele sorriu tímido e disse.

¾ Talvez... me busca aqui daqui a pouco. Saio às cinco horas.

¾ Sim. Até!

Amor? Nunca mais! Agora só foder por um lado e solidão e trabalho do outro!


Muito prazerOnde histórias criam vida. Descubra agora