Capítulo 4

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— É curioso — acrescentei — como nós, quando encarnados, nos opomos à dinâmica da Revelação! —A pretexto de fidelidade doutrinária, oferecemos resistência às obras que pretendem dar seqüência àquelas já consagradas...

— Na maioria das vezes, Inácio, tal acontece porque as obras às quais você se refere não foram escritas ou intermediadas por nós. É dificil que o homem encarnado não oponha resistência a verdade que não seja anunciada por ele...

Pausando por instantes, Odilon ponderou com sabedoria:

— Por outro lado, os excessos de imaginação carecem de ser evitados; se os médiuns e os espíritos não encontrassem resistência da parte dos que se erigem em patrulheiros ideológicos da Terceira Revelação, os absurdos doutrinários ou antidoutrinários que produziriam seriam muito maiores... Como vemos, tudo está certo, e a obra, quando traz a chancela da Verdade, acaba se impondo. A semente de boa qualidade germina entre espinhos e produz os frutos a que está destinada.

- Mais uma vez, você tem razão — comentei com o amigo de excelente bom-senso e cuja experiência nos assuntos relacionados com a mediunidade eu estava longe de possuir. — De qualquer forma, no entanto, me será lícito tentar, não é? Ou, também, devo me sujeitar a alguma espécie de censura deste Outro Lado da Vida?

— Não existe, de nossa parte, restrição alguma, Inácio, mas você conhece bem o nosso meio, lá na Terra...

— E como conheço!... Nos últimos tempos, por não suportar a convivência com certos companheiros de ideal, terminei, equivocadamente, me insulando; mil vezes preferível combater os padres do que os espíritas! ... Nas camadas simples dos adeptos do Espiritismo, entre os servidores por assim dizer, nos deparamos com a fraternidade legítima, mas nas cúpulas diretivas!

Qualquer que ocupe um cargo de direção, vira a cabeça e passa a se acreditar um espírito encarnado investido de elevada missão...

Odilon sorriu e, quando íamos dar seqüência ao assunto que, de certa forma, ainda me incomodava mesmo depois da morte, alguém se nos fez anunciar. A jovem atendente que trabalhava comigo, avisara-me que Paulino Garcia e Manoel Roberto haviam chegado e permaneciam à espera.

- Por favor, peça aos dois que entrem...

Odilon, sempre gentil, levantou-se da poltrona e cumprimentou os amigos efusivamente.

— Olá, Paulino! Como vai passando, meu filho? E você, Manoel? Há quanto tempo não nos vemos?...

— É verdade, Dr. Odilon, tenho andado um tanto ocupado ultimamente — respondeu o antigo Enfermeiro Chefe do Sanatório Espírita de Uberaba.

— Ocupado e preocupado, não é, Manoel? —aparteei com naturalidade.

— O senhor sabe como são os assuntos de família — explicou-se o amigo recém-chegado —: a gente desencarna, mas não consegue se desligar... A consciência continua me cobrando um melhor desempenho e tenho muito que fazer para tentar reunir os valores familiares que se dispersaram. Eu também sou um daqueles que não cumpriram bem com os deveres de casa...

- Não exagere, Manoel! — retruquei, com o propósito de aliviar o amigo, cujo semblante se cobrira de tristeza. — Você fez o que pôde. Eu, você, o Paulino, o Odilon — todos fizemos o que pudemos... Como se dar o que não se tem? Se a terra não é de boa qualidade, não adianta semear. Reaja, homem! A reencarnação está aí pela frente...

— Mas é justamente isto que me preocupa:

reencarnar e repetir os mesmos erros...

— Calma, Manoel! — foi a vez de Odilon falar, confortando o coração do irmão que tanto fizera pelo ideal que nos era comum. Não se angustie... Os nossos familiares são os nossos analistas em profundidade; se não nos sentíssemos responsáveis por eles, viver não seria assim tão complexo e nos iludiríamos quanto à nossa real capacidade de amar... Aqueles com os quais pouco convivemos pouco nos conhecem e nos transferem, de nós mesmos, uma imagem que não corresponde à realidade. Não fosse pelo remorso que nos prende à retaguarda afetiva, junto aqueles que integram o nosso grupo evolutivo, a indiferença seria a característica maior dos nossos sentimentos... As vezes, Manoel, nós esquecemos que pertencemos a Deus.

— O senhor tem razão — disse-lhe com os olhos marcados. — Eu preciso ser mais forte.

Mas veja o senhor: eu nada fiz que merecesse algum destaque. Apenas sempre procurei cumprir com os meus deveres espirituais e, no entanto, os meus familiares, com uma ou outra exceção, me supõem detentor de méritos que os dispensam a eles próprios, do esforço individual...

— Querem, Odilon — interferi, indo direto ao assunto —, as credenciais dele...

— Mas isto de querer para si o mérito alheio émuito próprio do homem. Há pessoas que vivem assediando os médiuns, na crença de que eles haverão de lhe facilitar o acesso às Regiões Superiores...

— Só se for às Regiões Umbralinas — atalhei, indignado, não deixando por menos.

— Muitos espíritas, recém-egressos do Catolicismo, estão querendo santificar os médiuns, e o pior é que há muito médium gostando de ser canonizado em vida... É uma aberração! A continuar assim, vamos ter que ampliar as dimensões deste hospital... É loucura que não acaba mais. O espírita necessita, com urgência, de se conscientizar de sua indigência. Eu pensava que, por ter escrito livros, polemizado com os padres e praticado alguns atos de caridade, fosse chegarpor aqui com duas asinhas... Ledo engano! Cheguei de rastros e, a rigor, ainda não me pus de pé...

A descontração provocada por mim surtira o efeito esperado e todos começamos a rir.

— E você, Paulino, o que tem a nos dizer? — perguntou Odilon, com a intenção de deixar o pupilo à vontade.

— Com relação à família, até que não posso me queixar. O meu pai, a minha mãe e os meus irmãos estão fazendo o que eu não faria... A minha única preocupação é a de nos permitirmos envolver em excesso pelas coisas do mundo e relegarmos as atividades espirituais a plano secundário; estamos indo bem, mas ainda corremos riscos...

— Sem dúvida, perseverar nas obras da fé é um constante desafio para quem se encontra no corpo — observei.

— A gente fica tanto tempo sem fazer nada, que, quando abre os olhos e percebe a extensão do serviço, chega a experimentar um certo desânimo — comentou Odilon, que prosseguiu. — E passamos a cumular os outros de exigências, reclamando porque não encontramos cooperação à altura, porque nos sentimos sobrecarregados, porque a Doutrina nos exorta a um maior desprendimento, e ainda não sabemos conciliar interesses que, em essência, são inconciliáveis...

Efetuando breve intervalo, o diligente amigo que todos temos à conta de devotado Instrutor, arrematou:

— Não importa, porém... Hoje já estamos melhores do que ontem, quando, então, nos lamentávamos de braços cruzados, entregues à inércia; agora, pelo menos, num nível de consciência superior, nos atiramos à "fogueira" e não temos como não nos chamuscarmos em suas labaredas... Este, de fato, é um caminho sem volta! Com menor ou maior aproveitamento, seguiremos adiante. Quem descerra os olhos para a luz não mais se contenta com as trevas, O nosso mais breve contato com o Espiritismo é suficiente para incomodar-nos pelo resto da vida!...

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