Capítulo 20

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Inquieto, a caminhar no aposento, de um lado para o outro, Nélio era o retrato do desespero.

- Socorro, Doutor! — continuava dizendo. — Arranque-me esta máscara da face, a máscara que eu mesmo plasmei... Quando eu descobri que podia obter as coisas com a força do pensamento, comecei a pensar; se via determinada jovem na rua que eu nunca tinha visto antes, desejava que ela fosse minha e, dentro de pouco tempo, tudo acontecia...

— É que os espíritos obsessores, meu filho — procurava explicar —, igualmente trabalhavam para que o seu desejo se concretizasse; eles descobriram o seu ponto fraco e investiram nele... O mal, quando se acrescenta ao mal, gera atitudes de conseqüências imprevisíveis — somente a força do bem para anulá-lo; o mal assemelha-se, em sua origem, a uma bola de neve que, se não for detida, provocará estragos de grandes proporções... Assim como o rio caudaloso tem a sua origem num filete d'água, a obsessão se enraíza através de ingênuos pensamentos de invigilância; a doença que se manifesta no cérebro, em verdade, é doença da mente...

— E agora, Doutor, o que farei? Não existe mais esperança para mim... Adoeci e não tenho cura. Anestesie-me, hipnotize-me, faça, por favor, qualquer coisa; submeta-me ao eletrochoque...

Eu me transformei num monstro; eu não me interessei, não, só por mulheres: eu queria o prazer de qualquer jeito (desculpem-me os leitores não relatar os pormenores da confissão do infeliz companheiro)...

— O erro é sempre o erro, Nélio, e, em qualquer situação, precisamos de arcar com as suas conseqüências. De que lhe valeria fugir à consciência de seus atos? Se eu o induzisse a dormir, por mais que dormisse, ao despertar, a conseqüência de suas atitudes estaria à sua espera; tão-somente adiaríamos a solução do problema... O seu caso, apesar de grave, não é sem solução, pois, pelo menos, você não mais se encontra sob qualquer tipo de indução hipnótica...

— Ah! ... — gritava o rapaz. — E aqueles aos quais eu enganei?... Eu abusei de muita gente, o senhor não sabe... Eu sou um monstro; eis o que sou — um monstro horripilante... Destruam-me! Eu não vou mais me controlar por muito tempo! Se vocês não me destruírem, fugirei daqui e serei um eterno aliado das trevas... Eu sou um monstro, um monstro lascivo...

E ali, diante dos meus olhos atônitos, Nélio começava a se transfigurar: o seu corpo se agigantava, os olhos injetavam-se de sangue, a língua saltava para fora da boca e o seu órgão sexual se desproporcionava. Desculpem-me, uma vez mais, os leitores, se os incomodo com as descrições que faço do estado de alguns dos meus pacientes; na condição de psiquiatra, digo-lhes que, em maioria, os casos de demência estão ligados ao campo da afetividade que, por sua vez, não se desvincula da problemática sexual, O meu intuito é o de apenas ser fiel à verdade e não o de escandalizar a quem quer que sej a. Neste sentido, aproveito para esclarecer que as narrativas inseridas nos livros "Sob as Cinzas do Tempo" e "Do Outro Lado do Espelho" foram, tanto quanto possível, suavizadas por mim... Talvez os nossos irmãos encarnados não façam idéia do que seja um hospital psiquiátrico ou uma penitenciária à noite... As mãos, que ele tantas vezes utilizara para curar, igualmente cresciam e se transformavam em seus instrumentos preferidos de sedução.

— Nélio!... — eu lhe ordenava com veemência.

Volte ao normal; você é um ser humano, não um animal... Retroceda, retroceda... Você não está mais no corpo de carne; a sua realidade agora é outra... Descondicione-se!... Todos somos criaturas de Deus; não duvide, meu filho, do poder de nosso Pai... Deus, que o criou, não teria poderes para transformá-lo?...

O esforço mental com que eu me opunha àquela forma bizarra era extremamente desgastante; o problema é que a mente de Nélio fazia o que queria de seu corpo espiritual, que já apresentava diversos hematomas e deformações. A continuar assim, o rapaz realmente renasceria em terrível condição — uma massa disforme no berço à guisa de criança...

Digo-lhes que a minha luta com Nélio prossegue ainda hoje, e os únicos instrumentos à minha disposição para auxiliá-lo são a palavra e o amor. Não possuímos, deste Outro Lado da Vida, pelo menos nas regiões em que nos demoramos, as aparelhagens miraculosas que os nossos irmãos encarnados imaginam; não existe máquina capaz de modificar o teor dos nossos pensamentos... Dispomos, sim, de modernos instrumentos que nos permitem acesso ao perispírito e, com eles, podemos atuar por fora, em intervenções semelhantes às da cirurgia comum, mas estamos longe de devassar, com segurança, os escaninhos da mente; para nós, médicos desencarnados, o cérebro continua sendo uma grande incógnita ou um outro universo muito mais amplo e indevassável.

Cessados os instantes de crise, o jovem médium se acalmava e indefinível torpor lhe permitia descansar alguns minutos; logo, porém, acordado pelos próprios pesadelos, Nélio começava a gritar e a chamar, com insistência, por mim. Sem dúvida, que fui me afeiçoando a ele. Só de pensar que eu poderia perfeitamente estar no lugar dele, eu me apavorava e me deixava conduzir pela compaixão. Todos os dias, pela manhã, a minha primeira obrigação era a de vê-lo — eu e Manoel Roberto, que sempre me acompanhava. Por cerca de 30, 40 minutos, conversávamos — apenas conversávamos; quando ele mais me ouvia, e me ouve, é quando eu começava a contar-lhe a minha própria história.

— Doutor, aponte-me uma solução — ele me fala em seus momentos de calma —; eu não posso reencarnar assim... Perto do que fiz aos outros, o suicídio não énada; eu não me importo com esta corda ao redor do meu pescoço: eu me importo é com o outro Nélio que vive dentro de mim... Como é isto possível? Sinto que, em meu interior, mora outro alguém... E eu só queria ser caridoso, um bom médium de cura; as pessoas me diziam que, quando eu as tocava, elas experimentavam indefiníveis sensações... Se a culpa for das minhas mãos, concordo em ficar sem elas; se for do meu rosto, eu quero me desfigurar...

— Nélio, vamos esperar um pouco mais — dizia eu, confiante. Retome o hábito de orar; assim que você aprender a melhor se conter, deixarei que saia daqui e realize algum serviço no hospital — cuidar da limpeza do pátio, do jardim... A paz mora nas coisas mais simples da Vida!

Não tenha medo da reencarnação. O que é uma existência no corpo perecível? O tempo não erra, embora nos dê a impressão de se arrastar, passa

com velocidade impressionante. Você errou, todos erramos... Não se desespere. A sua questão básica é a humildade; coloque-se, voluntariamente, no banco dos réus e aguarde a sentença, que nunca é de punição, mas de educação...

- Mas o senhor acha que eu me recupero?...

— Se você não pudesse se recuperar, significaria que Deus houvera falhado!...

— O senhor é o único que me fala com sinceridade... Os outros, os que se aproximavam, estavam sempre querendo alguma coisa de mim.

— Ninguém erra sozinho, Nélio; no entanto nem esta verdade deve servir de justificativa para os erros que cometemos... Se não concordamos com ela, vontade alguma é capaz de nos constranger. A semente não se desenvolve na gleba que não lhe oferece receptividade... Deixemos, porém, de procurar culpados. Somos chamados a nos fortalecer para fortalecer os outros e não para desfrutarmos de uma situação de privilégio perante a debilidade alheia.

— Doutor, o modo com que me diz as coisas que eu já sei faz com que elas me soem diferente...

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