Capítulo 15

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Clóvis Tavares argumentava com bom-senso incontestável, porém os espíritos que, ao ouvi-lo, tinham se aquietado em sua fúria, responderam, sofismando:

— Mudar? Sermos bons?... Não fomos nós que nos fizemos assim; não somos os autores do mal que encontramos pelo caminho... Qual a razão do sofrimento e a causa da dor que nos são impostos? Fazer a evolução? Com que motivo? Apenas para atender a um mero capricho do Criador? O que nos domina é uma força superior às nossas próprias forças... Tudo nos leva a crer que Deus é parcial e fez duas classes distintas de espíritos: os bons e os maus; nós somos os maus e — pronto! — talvez tenhamos sido escolhidos por Ele para colaborarmos no sentido de que os bons se façam melhores ainda, no entanto, neste trabalho, os maus ainda mais se corrompem...

Este é o nosso estado de felicidade, é assim que nos sentimos bem... Se nos fosse possível mudar, daqui há séculos e séculos, teríamos que optar por uma dor maior, e isto tudo para quê?

Apenas para ganhar o Céu?... Não, obrigado pela sua intenção, no entanto o nosso céu de lama nos é mais acessível e não temos que obedecer. Vivemos à Lei da Natureza e não nos sentimos culpados; o Criador, sim, é que deve viver com um eterno drama de consciência...

— Meus irmãos — rebateu o companheiro —, não blasfemem contra Aquele que nos tirou do nada e nos deu a possibilidade de atingir a Perfeição, vivendo em perene comunhão com o seu Infinito Amor; tudo que existe aspira à luz do Mais Alto... A lagarta, que se arrasta no solo, sonha em criar asas e voar no firmamento; a fonte humilde, sem nenhuma noção de rumo, corre na direção do oceano; desde épocas remotas, o homem deseja conquistar o espaço e residir nas estrelas... Crescer é uma aspiração natural da Vida! Concitou-nos Jesus: "Sede perfeitos, como perfeito é o vosso Pai celestial"... Ele mesmo, que já era o Caminho, a Verdade e a Vida, não hesitou em aceitar o sacrificio na cruz para expandir-se em mais íntima integração com Deus; sempre ser-nos-á possível dar um passo além nas sendas da Evolução... Não bracejem contra a correnteza do rio, pois, a rigor, não há quem não se canse de se opor à força das águas; deixem-se conduzir, amoravelmente, pelo Divino Pastor, que nos leva de volta ao aprisco... Ninguém nasce para fazer o mal, para servi-lo ou para exaltá-lo; todos somos herdeiros da genética do Criador, e as Suas qualidades vigem, em estado latente, na criatura... Não perlustremos caminhos que outros já percorreram, em vão. Vocês acabarão se arrependendo e verificarão que é inútil tentar resistir ao Amor que nos atrai e que nos quer para Si. O Bem ou o Mal são uma questão de escolha, porqüanto Aquele que nos criou nos fez livres e não escravos... Quem é que nos constrange a agir conforme não queremos? Quem é que impediu a nossa irmã de se arrepender ou os obstruiu, no propósito de serem os agentes da Justiça de Deus? Quem os colocou para morar no interior da Terra e quem, hoje, os chamou à superficie do solo? Quando não nos adequamos à Vontade que nos governa, embora não possa se adequar a nós, ela nos deixa ser o que queremos...

Notando quanto Clóvis se esforçava para esclarecer aqueles três infelizes, tomei a iniciativa de auxiliá-lo e falei sem rebuços:

— Há quanto tempo vocês estão assim? 50, 100, 200 anos?... Por mais quanto tempo pretendem ficar? Acaso, não percebem que tudo à sua volta está se renovando?... O mal não é eterno! Independente de sua vontade, ouso dizer que, um dia, cada um de vocês experimentará o desejo de ser diferente. Quem é que não aspira a saber como é a outra face de tudo? Não se enganem e nem se deixem enganar... Aproveitem que saíram à superficie e dêem uma espiada por aí; a forma que vocês adotaram é coisa primitiva... Hominizem-se! ... A fraternidade, embora ainda de maneira tímida, começa a imperar entre os homens; dentro de nós, há uma rejeição natural ao que não seja correto... A consciência, que é o eco da Voz de Deus em nós mesmos, a cada dia nos fala com timbre mais nítido. Agora ou depois, vocês se arrependerão — um primeiro, outro em seguida e, assim, sucessivamente... Ninguém pratica o mal com real convicção. Tudo é apenas uma questão de interesse; quando os seus interesses mudarem, vocês mudarão... A sensação de fazer o bem é desconhecida por aquele que nunca o praticou. Eu não acredito em vocês — desculpem-me, mas estou sendo sincero. Logo, vocês se cansarão do que são e tomarão a iniciativa de mudar — isto é uma simples questão de tempo. Porém, se pode ser amanhã, porque não fazerem com que seja hoje?... Onde estão os seus entes queridos, aqueles que verdadeiramente os estimavam?

Haverá entre vocês, na comunidade em que vivem, real afeição? Perdoem-me de novo, mas eu não acredito; se o egoísmo é forte à superficie da Terra, que se dirá em suas reentrâncias obscuras!... Eu sei o que existe abaixo de mim, mas desconheço o que existe acima, e é o que quero saber. O universo que vocês escolheram para viver é estreitíssimo; o que temos acima de nossa cabeça é incomensurável!...

Sem consentir que eu ou Clóvis Tavares prosseguíssemos na argumentação, um dos homens-javalis disse aos outros dois:

— Vamos embora, depressa!... Estes homens são perigosos e tentam nos enganar; não estão apelando aos nossos sentimentos, mas, sim, à razão... Não os ouçamos por mais tempo.

Parecem-me exímios na arte de ludibriar; o Chefe já nos advertiu a respeito deles... Que azar, o nosso de encontrá-los! Tentemos esquecer o veneno que nos inocularam no cérebro...

Vamos, fujamos! Voltemos para o nosso habitat; lá, eles não poderão conosco... Deixemos a infeliz em poder deles; já nos aproveitamos dela o suficiente e, depois, temos mais gente conosco...

Sem nos darem tempo para mais nada, o homem-javali que liderava o pequeno grupo mergulhou no solo lamacento e, como se estivesse a fuçá-lo, foi abrindo caminho para os outros dois, que o seguiram. Porém, para nossa surpresa, o último deles a se atirar na lama, quando os dois primeiros já haviam desaparecido, retrocedeu e caminhou na nossa direção.

— Eu aceito a proposta de vocês — falou, quase desabando aos nossos pés —; recolham-me, por caridade! ... Eu não agüento mais. De há muito, venho sentindo náuseas... Quero arrancar esta máscara da face e não consigo; estou com saudades de minha mãe... Eu não sou um animal, eu sou um ser humano; vocês têm razão: eu não posso continuar vivendo assim... Lá, onde a gente se esconde, eles nos obrigam a jurar fidelidade ao Chefe. Quem se rebela é supliciado, e eles praticamente o deixam descerebrado... Muitos querem se libertar, mas são dominados. Por favor, não me deixem voltar; tratem de mim, dêem-me remédios... Devolvam a minha forma humana!...

Assim dizendo, o espírito que retrocedera cambaleando e se aproximara de nós, desfaleceu e não mais deu acordo de si.

O líder do grupo, que se havia chafurdado na lama, colocou a imensa cabeça de javali para fora e, atinando com o acontecido, antes de novo mergulho, vociferou:

— Eu estava desconfiado de você, bandido! Você nos traiu... Cuide para não cair nas nossas garras... Frouxo! Você não passa de um frouxo!...

— Inácio — disse-me Odilon —, este também é com você; providencie para que o nosso irmão seja removido...

Sem conseguir controlar o velho hábito de gracejar com coisas sérias, respondi:

— Pelo jeito, eu vou ter que ampliar as dimensões do hospital!...

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