Capítulo 13

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A praça em que nos havíamos reunido já se encontrava praticamente vazia; diversos grupos, procedentes de várias regiões da Espiritualidade, haviam partido e, agora, os curiosos e desocupados de além-túmulo se aproximavam, como que para vasculhar os espólios do concorrido velório... Contrastando com a luz do corpo espiritual de eminentes entidades, esses outros nossos irmãos se mostravam opacos em seu novo veículo de expressão, dando-me a impressão de que, embora desencarnados, ainda não tinham logrado completa emancipação; muitos caminhavam sem qualquer desenvoltura, qual se fossem doentes com dificuldade para mudar o passo...

Observei que semelhantes espíritos que, aos poucos, emergiam das sombras, eram em grande número e, com raras exceções, se revelavam de facies sofrida; os que constituíam exceção possuíam uma expressão malévola na qual lhes transparecia o grau de ensandecimento... Com a minha experiência em lidar com pacientes psiquiátricos por mais de meio século, não tive dificuldade para separar uns e outros, ou seja, os que unicamente sofriam e os que sofriam e faziam sofrer.

—Antes de nos juntarmos a vocês — explicou Gonçalves —, eu, Weaker e Clóvis estávamos conversando com alguns irmãos desencarnados que, impressionados com o que viram aqui, estão dispostos a mudar; eles estavam nos perguntando o que devem fazer para reencarnar...

— Não podemos — falou Clóvis com espontaneidade — deixar perder a "safra" que se nos oferece aos propósitos de colher para Jesus... Eu imaginava que não passava de lenda o que os Evangelhos ditos apócrifos nos relatam, referindo-se aos espíritos que habitam o interior da Terra e que, com o episódio da Ressurreição, se libertaram das regiões abissais, atraidos que foram pela Luz que brilhou na superficie. Contam as tradições que espíritos acorrentados às profundezas, por séculos, conseguiram se emancipar e, em massa, se converteram ao Cristianismo, porqüanto Jesus Cristo não se dirigia apenas à comunidade dos encarnados: Ele pregava para os que se encontravam no corpo quanto para os que se encontravam fora dele; caminhou entre os vivos e os mortos, dialogando o tempo todo com homens e com espíritos, e a sua crucificação se deu por um conluio entre os que tramaram a sua morte dos Dois Lados da Vida...

Identificando-nos na condição de adeptos do Espiritismo e amigos de Chico Xavier, começamos a ser abordados por aquelas entidades infelizes que, aos meus olhos, se assemelhavam a sobreviventes onde houvesse sido travada intensa batalha. A grande maioria exibia as vestes em farrapos e, além da obscuridade espiritual à qual já me referi, deixavam exalar de si quase insuportável odor...

— Por favor, auxiliem-nos! — disse-nos um deles, adiantando-se aos demais. Estamos convencidos de que, realmente, o mal não compensa... O que vimos acontecer hoje, aqui...

Estamos dispostos a enfrentar um novo renascimento. Que luz foi aquela que brilhou no céu com tanto esplendor? Queremos, igualmente, amar para sermos amados. Se vocês são discípulos de Chico Xavier, auxiliem-nos, por caridade. Não queremos mais permanecer nesta situação, mas não sabemos o que fazer...

Um espírito feminino, cujos olhos encovados no rosto macerado nos permitia entrever o tamanho do seu padecimento, atirou-se-nos aos pés, suplicando de mãos erguidas:

— Por piedade, estou arrependida; desde que deixei o corpo, a minha vida tem sido vagar nos caminhos do Além... Confesso-lhes que me transformei num vampiro e ando à busca de prazer. Incentivada por outros, pelos quais me deixei influenciar, rebelei-me contra Deus; no mundo, abandonada por meus pais, fui, desde jovem, uma mercadora de ilusões... De há muito quero mudar e, agora, creio que chegou o momento; estou profundamente comovida com a manifestação pública que observei no velório desse homem santo... Libertem-me de mim mesma!

Um outro, de barba crescida e unhas por aparar, qual mendigo de rua que ansiasse pelo beneficio de um simples banho, rogou-nos, envergonhado:

— Perdi excessivo tempo e perdi-me daqueles que eu mais amava; não sei mais de nenhum dos que eu amei na Terra... A ociosidade me viciou o espírito e dementei-me; tenho a impressão de que estou despertando de profunda letargia que de mim se apossara... Eu também quero e necessito mudar, pois, caso contrário, os meus sofrimentos se eternizarão... Socorram-me! Sei que não mereço, mas socorram-me!... Não me deixem mais entregue à própria desdita. Estou disposto a tudo e aceitarei qualquer corpo que se me ofereça no mundo...

Parecia-me, sem qualquer exagero, que os túmulos tivessem sido abertos e aquelas entidades do mundo subterrâneo, emergindo das trevas, estivessem empreendendo fuga dos que os mantinham encarcerados nas cavernas do remorso.

Olhando-me, significativamente, Odilon comentou:

— Quantas bênçãos a vida e a suposta morte de um verdadeiro homem de bem pode espalhar! Quantos não estarão sendo motivados à renovação íntima, ante o episódio da desencarnação do nosso Chico! ... Ele que, no corpo, descerrou caminhos para tanta gente, ao deixar a vestimenta fisica, prossegue orientando com os seus exemplos os que se desnortearam além da morte. Faz-me recordar o que disse Jesus, no capítulo 12, versículo 24, das anotações de João: "Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, produz muito fruto".

— O trabalho dos nossos irmãos espíritas, ao que percebo — falei por minha vez —, doravante há de redobrar; é bom que eles estejam preparados e arregacem as mangas... Um número maior de encarnados e desencarnados haverá de acorrer às nossas casas de fé, na expectativa de orientação e esclarecimento. Estaremos em condições de recebê-los?...

Indo ao âmago da questão, Gonçalves considerou:

— Se os nossos companheiros de ideal que ainda labutam na carne, agirem com menos personalismo e um pouco mais de boa vontade em servir, não teremos dificuldade; o nosso problema mais sério são as nossas discussões intestinas...

— Tudo vaidade, Gonçalves — interferi, não resistindo —' vaidade e hipocrisia de dirigentes e médiuns... Não perdemos a mania de querer aparecer às custas da Doutrina; até na prática da caridade falta-nos idealismo... Desculpe-me, se não aprendi a amenizar, mas as lembranças que trago do nosso Movimento, ainda estão bem vivas dentro de mim; os espíritas, com raras exceções, acham que são os tais: colocam a mão no bolso e olham os outros por cima da cabeça, como se o conhecimento espírita, por si só, lhes concedesse supremacia... Como estão enganados, meu Deus! Quantos conheci que se envaideciam por serem amigos de Chico Xavier, acreditando que a amizade dele pudesse garantir-lhes a entrada em "Nosso Lar"... Algumas vezes em que estive pessoalmente a visitá-lo, com o meu incorrigível senso de crítica, notava quanto aqueles que o rodeavam lhe disputavam a atenção, ignorando, total ou parcialmente, o sacrificio a que ele se submetia no cumprimento do dever, com o intuito de nos ensinar a fazer o mesmo.

- Você não deixa de ter razão — redargüiu-me o confrade. —Q homem crê que, para se iluminar, bastar-lhe-á se aproximar da luz ou que, para não sentir sede, lhe é suficiente a proximidade da fonte... Confesso-lhe, Inácio, que quando perto do nosso Chico eu experimentava imensa vontade de ser igual a ele, porém, quando me distanciava, tomando o caminho de volta para casa, aquele meu impulso, aos poucos, ia desaparecendo e, então, eu ficava triste com a constatação da própria realidade: como as de Ícaro, as minhas asas eram de cera!...

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