Capítulo 29

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— Desculpe-me você, jovem — redargüiu Adelino... Como é mesmo o seu nome?

— Timóteo, senhor; o meu nome é Timóteo — respondeu.

— Pois, sem a intenção de ofendê-lo, digo que você é um dos que têm maior possibilidade de queda...

— Eu?...

— Sim, meujovem, você mesmo; quem ainda nem começou e já está advogando em causa própria... Seja prudente. Uma coisa é a escola, outra coisa é o mundo... Eu estou me vendo em você, tempos atrás; chegava a ficar horas inteiras, diante do espelho, ensaiando. Li, inclusive, sobre teatro, com o intuito de dramatizar em minhas conferências... Quando não conseguia levar o auditório às lágrimas, eu me aborrecia; preocupei-me mais com a forma do que com o conteúdo...

Sem perceber, fui distanciando o coração da palavra.

Timóteo inclinara a cabeça e Adelino prosseguiu:

- Agora estou aqui, neste hospital, experimentando imenso vazio no espírito... Não me habituei a servir, mas, sim, a ser servido; o meu negócio era ser notado... Os espíritos que me inspiravam anonimamente foram, aos poucos, cedendo espaço àqueles que revelavam vocação para o palco. Preguei a Doutrina, mas não a impregnei. Quando alguém tentava me alertar, eu reagia com personalismo... Eu, vaidoso?... Não, as pessoas é que tinham inveja de mim, do meu estilo... Transformei-me num daqueles bonecos de ventriloquia, que só movimentam o maxilar inferior.

Depois de pequeno intervalo, Adelino arrematou:

- Você me desculpe, meu jovem, o doente aqui sou eu; é que, quando eu me deparo com o meu futuro, o meu passado me causa indignação... Desejo que voce seja um vitorioso e, se depender de seus mestres, certamente haverá de sê-lo; mas, se eu estivesse hoje em seu lugar, solicitaria providências no sentido de que a gagueira me acometesse até determinada idade... O bom orador não é aquele que chega a apresentar calos nas cordas vocais, mas, sim, nas mãos.

Perdoe-me, mas disto eu entendo bem e posso falar; a eloqüência foi uma das poucas coisas que a morte ainda não me tirou...

— Bela maneira de tratar as visitas, Adelino! —interferi em tom repreendedor.

- Não, Inácio — observou Odilon —, não se preocupe com constrangimentos; o nosso Adelino está coberto de razão e Timóteo deve refletir no que ele lhe disse; aliás, não apenas Timóteo... Viemos visitar o hospital dirigido por você para colher depoimentos semelhantes. O nosso Timóteo não ignora as suas dificuldades pessoais, não é, meu filho?...

Tímido e hesitante, o rapaz concordou:

- Eu ainda não aprendi a ouvir a verdade a meu próprio respeito...

- Em geral — explicou o Instrutor —, o que nos fere ou magoa é o que mais colabora conosco no sentido de desenvolver a humildade; é o nosso amor-próprio que nos ocasionará aborrecimentos... A humildade é uma virtude ativa no agir e passiva no reagir. Quem não ouve o que o contraria não se liberta da ilusão que o escraviza...

— Pois é, Adelino — voltei a direcionar a palavra ao meu paciente, — você poderia nos ser muito útil com a sua experiência de vida... O erro dos outros sempre nos serve de advertência.

— Dr. Inácio, a pessoa escuta, mas quer cair... O senhor sabe que é assim. Eu não acreditava que o que acontecera aos outros pudesse acontecer comigo... Por isto é que não adianta abrir a boca; quem não rala os joelhos não aprende...

— E você aprendeu, Adelino? — perguntei, indo ao centro da questão.

— Ainda não, Doutor, ainda não. A decepção que tive comigo foi muito grande; vou precisar de um tempo mais longo para me recuperar. Nem sei por onde recomeçar...

— Eu já lhe disse: tome uma vassoura nas mãos e vai varrer o pátio... (Os nossos pacientes leitores poderão desacreditar de tudo que relatamos nesta obra, mas não acreditem que, no Mais Além, o espírito possa recuperar-se sem o concurso de pátios e vassouras.)

— Doutor! Varrer o pátio?...

— Por que não? Catar folhas de árvores, recolher o lixo...

— O que eu conheço me impede de fazer o que eu preciso...

— É um falso conhecimento, Adelino... Na realidade, a única coisa que você tem para transmitir de seu é a experiência resultante do seu fracasso; o resto, como nós dizíamos nos tempos de colégio, é decoreba pura... Você sabe a Bíblia de cor? É capaz de se lembrar, uma a uma, das perguntas e respectivas respostas de "O Livro dos Espíritos"? Ora, Adelino, quem faz uma prece com fé sabe muito mais que você!...

Evidentemente, que não tínhamos tempo de apresentar caso por caso dos nossos visitantes; cada um dos nossos internos encerra uma história diferente, que merecia e merece ser apreciada, mas os minutos à nossa disposição eram demasiadamente escassos para que o pudéssemos fazer.

Despedindo-nos de Adelino, que fizera questão de abraçar Timóteo, que se emocionara, tomei a iniciativa de levá-los à presença de um sacerdote recolhido às dependências do Hospital por obséquio de um grande amigo, o ex-Padre Sebastião Carmelita, do qual, anteriormente, já lhes falei.

O clérigo desencarnado, assim que me viu, não me poupou palavras de agradecimento:

— Não sei o que dizer, Dr. Inácio... O senhor tem sido tão bom para mim; eu estava numa situação muito difícil... Graças ao senhor e ao Carmelita é que tenho me recuperado; ainda sinto fortes crises, mas, a cada dia, estou me fortalecendo...

- Estamos apenas cumprindo com o dever, Jerônimo — respondi, pousando-Lhe a destra sobre o ombro. — Você tem sido afável às nossas recomendações e, segundo creio, Logo receberá alta.

— Reconheço que, na condição de membro da Igreja Católica, falhei muito; limitava-me a ouvir os fiéis em confissão e a rezar as minhas missas... Não consegui sentir a grandeza do Evangelho em mim mesmo — o que lamento, profundamente. Perdi excelente oportunidade de servir ao Senhor.

— Você não tinha vocação para o serviço religioso e, muito menos, para o apostolado da Caridade...

- É verdade, é verdade... Embora sendo devoto de São Vicente de Paulo, abracei o sacerdócio por decisão familiar; desde menino, a minha mãe me prometia à igreja...

— Jerônimo — ponderei —, o equívoco só não foi maior devido ao seu caráter; aqui mesmo temos inúmeros religiosos em piores condições... Você, pelo menos, não se prevaleceu da batina para mercadejar com os dons divinos...

— A minha saúde era muito debilitada; graças a Deus, fui um homem doente, pois, caso contrário...

— Em muitas circunstâncias — concordei —, a doença, de fato, é uma bênção, preservando-nos de quedas espetaculares... E, por falar em doença — disse, dirigindo-me aos pupilos de Odilon, que me olharam, assustados, algum de vocês se lembrou de pedir algum tipo de achaque físico?... Ser médium no mundo sem um problema orgânico que o fustigue é uma temeridade!

— Os jovens irão servir à causa do Espiritismo? —argüiu-me Jerônimo, humilde.

— Esses jovens simpáticos e robustos, são candidatos à iniciação mediúnica — respondi, procurando fazer sorrir o pequeno grupo. — Reencarnarão brevemente...

— Eu ouvia vozes na infância e na adolescência... Os espíritos me fizeram sofrer muito; estigmatizavam o meu corpo...

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