Capítulo 16

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A minha tentativa de descontrair não funcionara. A verdade é que estávamos todos consternados com a situação daqueles nossos irmãos, que, em determinado trecho do caminho, se haviam equivocado e, agora, demandariam grandes lutas para se recuperarem. Por outro lado, no entanto, não adiantava tristeza; eles, com certeza, haveriam de se refazer; com o tempo, curariam as suas lesões mentais e, um dia, seriam felizes... Era o que estava acontecendo conosco, que nos encontrávamos sob intenso tratamento nas lidas espirituais a que fôramos chamados. Apesar do meu jeito extrovertido, em meu íntimo pensava:

— Todos esses nossos irmãos são filhos de Deus, que cuida do pequenino grão de areia perdido no deserto quanto do mais belo e portentoso astro a gravitar no cosmos... O mal é apenas uma experiência transitória; o objetivo da dor é o de nos disciplinar; em verdade, não existe punição: o que existe é educação... O aprendizado é lento e gradativo, mas fatal; embora persistamos nas trevas, todos estamos destinados à luz... A cada passo, nos sentimos atraidos por uma força que nos faz convergir para Deus... Não somos mais que crianças que se distraíram de seus deveres...

O tempo urgia e necessitávamos de nos despedir; aos poucos, os diversos grupos socorristas foram se retirando e os amigos que havíamos encontrado necessitavam partir.

Abraçamo-nos fraternalmente e seguimos, eu, Paulino Garcia e Odilon. Colaboradores anônimos se encarregaram de conduzir as diversas entidades espirituais que, digamos, com toda aquela movimentação que acompanhara o velório e o sepultamento de Chico Xavier, se haviam "convertido"; incalculável número de espíritos obsessores que, seguindo as suas vítimas encarnadas, tinham passado por ali, adentrando ou permanecendo nas vizinhanças do "Grupo Espírita da Prece", foram tocados... E evidente que nem todos se beneficiaram diretamente: a maioria permanecia recalcitrante, mas muitos se desligaram de seus desafetos, tomando a iniciativa de abandoná-los...

Tenho-me esforçado ao máximo para descrever aos nossos companheiros de ideal o que pude testemunhar, mas sei que tudo quanto eu lhes diga será um pálido reflexo do que aconteceu naquelas inesquecíveis quarenta e oito horas em que o corpo de Chico foi velado.

De volta ao hospital, preferimos caminhar durante boa parte do percurso que efetuávamos: sentíamos necessidade de espairecer e conversar. De quando em quando, parávamos e olhávamos para trás e, ao mesmo tempo, nos púnhamos a contemplar o Infinito... O grande vazio que os nossos irmãos espíritas estavam experimentando, de certa forma também estava em nosso coração; não sabíamos para onde o espírito Chico Xavier havia sido conduzido — e eu que chegara a pensar que os mortos não sabem o que é ter saudade!... Assim como os homens se esquecem de que são espíritos, por vezes os espíritos se esquecem de que são homens. A morada dos anjos, efetivamente, estava muito distante de nós, que tão próximos estamos da Terra, que, não raro, chegamos a ouvir os ruídos e os burburinhos da vida humana.

— É, Inácio — falou-me Odilon —, os nossos confrades, especialmente aqueles que privaram com Chico Xavier hão de sentir muito a sua ausência; espíritos como ele, apenas de tempos em tempos se corporificam no Planeta... Alguns lamentarão o fato de não terem melhor aproveitado as suas lições, durante as incontáveis tertúlias doutrinárias das quais participaram: as reuniões madrugada adentro, os encontros, os diálogos informais, as visitas à periferia da cidade, as informações mediúnicas, o seu sorriso espontâneo...

— E nós que achávamos que ele, ao desencarnar, ficaria à nossa disposição, não é?... — considerei. — Muitos, de alguns anos para cá, viviam na expectativa do seu retorno e, para reencontrá-lo agora, pelo menos no que me diz respeito, vamos ter que subir...

— No que me diz respeito também, Inácio —redargüiu Odilon, humildemente. — E, no intuito de subir, não podemos mais dizer que ignoramos o caminho... A Terra, de fato, é a abençoada oficina em que forjamos as asas que nos possibilitam desferir vôos mais altos. É uma pena que poucos compreendam isto. Muitos de nossos companheiros de ideal executam as suas atividades, sejam elas mediúnicas ou não, sem real proveito para si. Abraçam o Espiritismo, mas não se permitem abraçar pelo Evangelho... Os estágios de assimilação do aprendizado são diversos e variados; não nos basta a simples condição de adeptos da Doutrina, para que nos justifiquemos no Mais Além, quando formos avaliados em nossas ações pelo tribunal da consciência...

Enquanto Odilon falava e caminhávamos, de súbito tive uma idéia que expus ao devotado amigo:

— Já que estamos com tempo, que tal uma rápida visita a Pedro Leopoldo, a terra natal de nosso Chico?... Eu nunca estive por lá e creio que o Paulino também não.

— Não — respondeu de pronto o simpático jovem, aprovando a minha sugestão —, eu não conheço Pedro Leopoldo e, de há muito, anelo em meu coração excursionar por aquelas bandas de Minas Gerais... Seria interessante e oportuno.

Concordando conosco, Odilon recomendou que utilizássemos a faculdade de volitar e, em poucos minutos, chegávamos à referida cidade, onde fomos recebidos por um senhor de nome Zeca Machado, antigo companheiro das lides espíritas de Chico Xavier.

Como em Uberaba, os moradores de Pedro Leopoldo estavam consternados pela partida do filho ilustre, que de lá saíra em 1959. Ciceroneando-nos, Zeca, a pedido de Odilon, levou-nos para conhecer os pontos pitorescos da passagem do inesquecível médium pela Terra.

- Quando Chico — explicou-nos — transferiu residência para Uberaba, é evidente que ele nos fez muita falta, no entanto a recomendação que os Espíritos Superiores lhe fizeram neste sentido não poderia ser ignorada; as coisas estavam ficando muito complicadas para ele e a família que, em função do seu trabalho, havia perdido toda a privacidade... À época, Pedro Leopoldo era uma cidade pouco povoada, mas muita gente, de alguma forma, queria tirar partido da presença de Chico; vocês sabem o que representa a chamada tentação do dinheiro... Ele não teve alternativa e ainda bem que encontrou, no Triângulo Mineiro, as condições ideais para dar seqüência ao seu trabalho. No início, eu mesmo não compreendi a sua decisão, mas, depois, vi que ele havia acertado. Do ponto de vista doutrinário, foi bom para nós — o Movimento cresceu, passamos a nos sentir mais responsáveis; outros médiuns, que viviam à sombra de Chico, foram convocados à lida... E, depois, ele nunca nos abandonou: periodicamente, aqui estava, visitando a família e os amigos — não perdemos contato... Quando nos era possível visitá-lo em Uberaba, éramos sempre recebidos com grande alegria. A cidade de Uberaba, mais ligada a São Paulo do que a Belo Horizonte, ensejou que a tarefa do Chico se difundisse por todo o Brasil. Enfim, foram vários os aspectos positivos de sua transferência para lá. Hoje, com a graça divina, o movimento espírita de Pedro Leopoldo é dos mais promissores; os grupos trabalham ativamente e têm priorizado o estudo da Doutrina — o estudo e, conseqüentemente, a sua vivência...

Respirando fundo, como se estivesse a lembrar-se de saudosos tempos idos, Zeca continuou:

- É difícil acreditar, mesmo para nós, que éramos próximos, que um espírito da envergadura de Chico tenha vivido por aqui... A história de sua infância é comovente; desde criança, ele era diferente... Agora éque percebo que, em tudo que fazia, os espíritos estavam com ele. Digo-lhes, sem exagero, que, se Chico tivesse continuado no seio da Igreja, hoje ele seria considerado um santo. A sua vida, em muitos lances, me lembra a vida de Francisco de Assis, que renunciou a tudo para servir a Jesus...  

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