Capítulo 40

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- Meus irmãos — comecei —, estou sabendo de suas reivindicações e não vamos discutir se são justas ou não... A verdade é que todos nos habituamos a clamar pelos nossos direitos e, mesmo depois da morte do corpo, olvidamos os deveres que nos reclamam. Precisamos acordar para as nossas responsabilidades... Até quando haveremos de imitar os adolescentes, que exigem de seus tutores o que devem conquistar à custa do próprio esforço, recusando-se a crescer? Quem é que aqui, neste hospital, nos paga as despesas? Quem é que nos garante o tratamento, já que nos complicamos na experiência terrestre que vimos de deixar? Onde estão os nossos familiares que deveriam, pelo menos, vir nos prestar solidariedade, porém nos ignoram? Todos, sem exceção, encontramos esta casa pronta, de portas abertas para nos acolher em nossas desventuras... Há quanto tempo aqui estamos, e aqui permaneceremos, sem nos preocupar com a origem de tudo o que, graciosamente, nos tem sido concedido? Cama asseada, quartos limpos, roupas convenientes, alimentação adequada... Onde é que estaríamos, se a misericórdia do Senhor não nos amparasse nos umbrais da desencarnação? Todos os que vivemos debaixo deste teto, fracassamos em nossos compromissos; sequer atendemos pela metade as obrigações espirituais que nos diziam respeito...

Abraçamos determinados votos religiosos e tentamos ludibriar a consciência; por este motivo, não pudemos ascender às Regiões Superiores e ainda foi a Complacência Divina que nos resgatou das Trevas, onde seria o nosso justo lugar... Não continuemos a nos enganar, inculpando os outros pelos nossos equívocos. Devemos a nós próprios as nossas desditas e, caso não tomemos providências, reincidiremos, quando nos seja facultada a bênção de um novo renascimento...

Digo-lhes, com sinceridade, se eu não sabia se estava excedendo em minhas palavras, pois até mesmo Manoel Roberto me observava um tanto espantado, temeroso, talvez, do que ainda estivesse por vir, mas sentindo uma necessidade enorme de falar continuei:

— Porventura, já lhes passou pela cabeça que aqui, neste hospital, não temos nenhuma espécie de convênio médico? A quem mandar a conta no final do mês? A vida que encontramos além-túmulo não nos libertou de certas convenções. O espírito não se sustenta de ar e não vive por mágica, como imaginam aqueles que esperam morrer, na vã esperança de cruzar os braços em definitivo... A decepção que os espera é semelhante àque temos experimentado, em confronto com a realidade íntima. A gleba não responde sem o suor do trabalhador e a semente cultivada não foge à sua espécie, ou seja: impossível que dojoio nasça o trigo!... Se pretendemos melhorar, carecemos de promover a melhora que desejamos. O Senhor nos concede os recursos, mas a iniciativa nos pertence. Há quanto tempo instamos com os nossos irmãos e com as nossas irmãs que conosco aqui se encontram albergados, no sentido de que cooperem mais decididamente em sua recuperação? Excetuando-se os doentes mais graves, que sequer puderam vir ao Grande Auditório e participar desta reunião e que, certamente, serão conduzidos em estado de semilucidez à reencarnação, todos vocês, ou melhor, todos nós temos sido relapsos... Quase ninguém nos atende à recomendação de participar, sendo úteis de alguma forma, de seu processo de restabelecimento.

De espírito ocioso, como haveremos de adquirir novos hábitos, gerando um automatismo de caráter positivo que nos beneficie? O escultor não imprime forma ao mármore do dia para a noite, porém não descansa o cinzel e o malho, até que veja a obra consumada. Vamos, pois, a partir de hoje, diminuir as nossas queixas e refletir que aqui estamos amparados pela caridade daqueles que, em nome de Jesus, ergueram estas paredes... Repito, de onde nos chega o pão de cada dia? Os nossos irmãos encarnados nos supõem isentos de todas as necessidades... Melhor, sem dúvida, que fosse assim!... As nossas carências materiais apenas se eterizaram, não desapareceram; se queremos restringi-las ao máximo, precisamos ousar passos além...

Neste momento, sem conseguir esquecer a experiência que vivenciara na companhia de Odilon, na excursão que nos fora ensejada à Próxima Dimensão, consenti que lágrimas me assomassem aos olhos de maneira discreta.

— De hoje em diante — prossegui com a voz embargada — neste Hospital consagrado aos médiuns enfermos, os que puderem, pelo menos, empunhar uma vassoura haverão de trabalhar!...

O que reivindicamos, servindo, não nos é negado — isto é da Lei! A Graça Divina que nos alcança vem em complemento ao esforço que despendemos. Todo doente psiquiátrico — e nós somos qualquer um deles — não carece tanto de remédio quanto carece de melhorar a auto-estima. O desequilíbrio, que apenas varia de intensidade em sua forma de manifestar-se, recebendo os mais diversos rótulos da Medicina psicossomática, é uma auto-punição, uma espécie de acomodação íntima das camadas da personalidade convulsionada... Se o medicamento específico age no quimismo cerebral, não logra modificar o espírito, que só Deus pode tocar. Portanto, doravante, providenciaremos atividades para todos, que deveremos retribuir à Caridade o que dela temos recebido; faremos jus ao que aqui tem sido gasto conosco, sem que quase nunca cogitemos da procedência das bênçãos com que somos aquinhoados.

Com uma piscadela de olho para Manoel Roberto, que se sentia mais aliviado com o meu pronunciamento, encerrei:

— A papelada com as reivindicações de vocês já foi devidamente encaminhada a departamento superior e, enquanto esperamos que seja deferida, vamos arregaçar as mangas...

Amanhã mesmo, chegará ao hospital um carregamento de vassouras, rodos e esfregões; fica decretado, por aqui, o fim da ociosidade e a rezaria do~ que insistem que as palavras devem substituir o esforço... Os servidores que não estiverem satisfeitos, podem solicitar transferência; ouvi dizer que existem muitas vagas nas regiões umbralinas e as equipes de resgate que operam na superficie da Crosta e em seu interior estão precisando de voluntários... Tenho dito!...

Quando terminei a breve alocução, poder-se-ia escutar, se houvesse algumas delas por ali, uma mosca voar no ambiente. A maioria, sentindo-se valorizada, estava feliz, mas um colaborador mais ativista, perguntou-me, à saída:

Dr. Inácio, o que acontecerá com quem não estiver disposto a se enquadrar nas novas normas diretivas da casa?

Olhando-o firmemente nos olhos, respondi, apontando com o indicador:

— A porta de saída do Hospital é aquela lá!...

Entusiasmado com o resultado da preleção, Manoel

Roberto interpelou-me:

— Quando, Doutor, teremos uma nova reunião semelhante?

— Espero que nunca — esclareci. — Você sabe que eu sempre fui avesso à reuniões de diretoria: muita teoria e pouca ação...

Saindo do Grande Auditório, fui direto para o meu gabinete, onde, trancando a porta, me deixei cair numa poltrona e comecei a meditar: não posso cometer no Hospital os erros que cometi no Sanatório... Dirigir, sim, com o coração, mas jamais abdicar da razão. Sem ordem e disciplina, até a prática do Bem termina descambando. Ser humilde não significa ser conivente com o que não está certo; os que contemporizavam para manter os seus cargos estão sendo omissos e indiferentes...

Enquanto refletia, instíntivamente levei a mão sobre pequeno banco almofadado, à procura de algo de que, há muito, eu estava sentindo falta... Ora, bolas, não deveria ser tão dificil assim conseguir, além da morte, um... bichano. Por que os gatos não haveriam igualmente de sobreviver?

Haveria, na Lei, alguma discriminação contra os animais?...

Chamando o incansável Manoel Roberto, solicitei que, o mais rápido possível, nem que tivesse que importar de algum lugar — e ele sabia de onde — providenciar um gato para mim, ou melhor, um casal de gatos!...

Fim  

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