Capítulo 21

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A receita sempre havia sido a mesma, constava apenas de quatro míseros ingredientes, mas por mais que me esforçasse nunca ficava igual ao da minha mãe, se bem que sei que a culpa também era minha, eu adorava inventar e por mais que pensasse em fazê-lo nunca seguia à risca as porções, metia sempre um pouquinho de chocolate a mais, ou acrescentava o caramelo que não constava sequer da lista, porque bem, eu adorava caramelo.

Mergulhei no chocolate dois canudos de bolacha de baunilha que eu adorava sempre trincar envoltos no chantilly que colocava no topo e atrevi-me a espalhar mesmo algum do meu doce predileto no final, pois lembro-me de no dia da gelataria ele ter seguido o concelho do meu irmão em relação ao caramelo e em meros segundos devorou-o.

Coloquei uma pequena madeixa de cabelo atrás da orelha, antes de pegar nas fumegantes bebidas de forma nervosa. Entrei na sala em lentos passos, enquanto o observava silenciosamente a morder o seu lábio inferior atento à minha gravação de "If I stay" na parte em que o acidente de carro se sucede, parecia quase em sofrimento com a cena.

- Nunca tinhas visto esse filme? – pergunto fazendo notar a minha presença, mas ele continua com o seu ar chocado a olhar para o ecrã.

Sento-me de pernas à chinês em cima do sofá a olhar para ambas as canecas de forma reticente, sei que está em minha casa e é estúpido pensar assim, mas não o quero incomodar.

- Ela morreu? – inquire com o sobrolho franzido, dando-me resposta à pergunta inicial, ele nunca viu este filme.

- Não. – riu com a sua expressão chocada. – Quer dizer, esse filme é um bocado fictício, ela agora entra em coma e fica presa numa espécie de limbo entre a vida e a morte, durante esse tempo ela tem de decidir se fica ou vai, podendo à mesma observar tudo o que se passa à sua volta como uma... - remexo no meu dicionário mental procurando por algo adequado.

- Fantasma? – auxilia erguendo ainda mais a sobrancelha enquanto eu procurava pela palavra certa.

- Uma espécie disso... ela tem uma segunda oportunidade, basicamente ela é que tem a missão de escolher se morre ou não. – encolho os ombros.

- Uma espécie disso... - repete com humor na voz.

- Sim, não sei bem ao certo, mas nem importa muito, essas coisas não existem não é? – digo com um risinho e ele observa-me divertido.

Entreolhamo-nos durante alguns segundos até que lhe entrego uma das canecas e mordo um dos palitos para cortar um pouco a tensão que se estava a formar. Ele agradece-me com um sorriso e encosta-se melhor ao sofá inclinando-se um pouco na minha direcção. Molha os seus lábios com a língua e desfolhei-a aleatoriamente o amontoado de folhas como um leque.

- "Ela podia ser como uma leve brisa, mas inconscientemente era como um vendaval." – diz após dar um golo no chocolate quente. – "Acalmava-lhe a alma mas desinquietava-lhe a mente." – sorri com a cabeça baixa mas os olhos direccionados a mim, demonstrando um daqueles olhares que mesmo de forma inocente conseguiam retirar o fôlego a qualquer pessoa. 

Percebi que estava a citar uma das passagens do seu "livro" e mesmo com uma enorme vontade de rir pelo seu bigode de chantilly, contive-me, observando apenas o movimento dos roseados lábios a proferirem aquelas palavras, escritas por outro alguém, mas que ele encaixava tão bem em mim.

- Acalmo-te? – pergunto tentando não demonstrar tanta surpresa presente na voz como na verdade existe. – E desinquieto-te... – por momentos pensei que ele estivesse a comentar outra coisa qualquer ou a falar apenas por falar, pois a pausa que se seguiu junto ao seu sorriso, pareceu-me uma eternidade que deu quase para afundar o meu coração dentro do estômago de vergonha.

FallenOnde histórias criam vida. Descubra agora