Race

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Pise na rachadura, você vai quebrar as costas da sua mãe.
Pise na pedra, você vai terminar sozinha.
Pise na vara, você está comprometido a ficar doente.
Olhe onde você pisa, você vai trazer a morte.

— Um canto comum das crianças no playground, usualmente acompanhado de pulos ou palmas.

Essa noite, eu tenho o mesmo sonho. Outra vez. Estou no topo de um precipício branco feito de areia. O chão é instável. O lugar em que estou de pé está começando a desmoronar, grãos começam a se distanciar e cair, cair, cair — milhares de metros abaixo de mim, para o oceano, que dá chicotadas e agarra tão forte que parece com um gigante ensopado espumoso, e toda crista espumosa explode na água. Tenho pavor de cair, mas por algum motivo não consigo me mover ou me afastar do precipício. E pouco antes de saber que não há nada abaixo de mim além do ar — que a qualquer fração de segundo vou sentir o ar me rodeando enquanto caio para a água — as ondas chicoteando abaixo de mim abrem por um momento e eu vejo o rosto de minha mãe, pálida, inchada e manchada de azul, flutuando logo abaixo da superfície. Seus olhos estão abertos, sua boca está separada como se ela tentasse gritar, seus braços estão estendidos ao seu lado, flutuando na correnteza, como se ela estivesse esperando para me abraçar.

É nesse momento que eu acordo. É sempre nesse momento que eu acordo. Meu travesseiro está úmido, e tenho uma sensação áspera na garganta. Estive chorando enquanto dormia. Marielle está perto de mim, uma bochecha amassada e murcha contra os lençóis, sua boca fazendo infinitas repetições silenciosas. Ela sempre vem para a minha cama quando estou tendo esse sonho. De algum modo, parece que ela pode sentir.

Afasto o cabelo de seu rosto e puxo o lençol molhado pelo suor para longe de seus ombros. Vou ficar triste de deixar Marielle quando eu partir. Nossos segredos nos deixaram mais próximas, unindo-nos. Ela é a única que sabe sobre a Frieza: um sentimento que vem às vezes, quando estou deitada na cama, uma sombra, um sentimento vazio que tira meu ar e me faz tremer como se eu estivesse mergulhada em uma água congelante. Em noites como essa —mesmo que seja errado e ilegal — eu penso sobre aquelas estranhas e terríveis palavras.

"Eu amo você", e me pergunto qual seria o gosto dessas palavras na minha boca, tentando me lembrar de seu ritmo cadenciado na língua de minha mãe. E, claro, eu mantenho seu segredo guardado. Sou a única que sabe que Marielle não é estúpida, nem lenta: não há nada de errado com ela. Sou a única que já a ouviu falar. Uma noite depois de ela ter vindo dormir em minha cama, acordei de madrugada, as sombras da noite dançavam no muro lá fora.

Ela estava soluçando baixinho no travesseiro perto de mim, pronunciando a mesma palavra uma e outra vez, cobrindo a boca com o cobertor, então eu mal pude escutá-la: "Mamãe, mamãe, mamãe".

Como se ela estivesse tentando proteger o seu redor; como se eu fosse sufocá-la durante o sono. Coloquei meus braços ao redor dela e a apertei, e depois do que pareceram horas, ela se esgotou de repetir aquela palavra e voltou a cair no sono, à tensão em seu corpo relaxando lentamente, seu rosto quente e molhado pelas lágrimas. Esse é o real motivo por ela não falar. Todas as suas outras palavras são substituídas por essa simples e iminente palavra, uma palavra que ainda ecoa nos sombrios cantos de sua memória. Mamãe.

Eu sei. Eu me lembro. Sento e vejo as luzes refletindo na parede, ouvindo o som das gaivotas lá fora, tomo um gole de água do copo que está próximo a minha cama. Hoje é 2 de Junho. Noventa e quatro dias. Desejo, por Marielle, que a cura chegue logo. Conforto-me com o pensamento de que algum dia ela vai ter o procedimento também. Um dia ela vai ser salva, e o passado e toda essa dor serão amassados suavemente como a papinha que estaremos dando aos nossos bebês.

My Only DeliriumOnde histórias criam vida. Descubra agora