Cinza

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"Os curados, incapaz de sentir fortes desejos, são portanto livrados de lembranças e da dor futura." ( Após o Procedimento, O Manual de Segurança, Saúde e Felicidade, p. 132).

O mundo está girando por pessoas e ruas desabrochando ao longo de uma fita de cor e som. Nós corremos passando o St. Vicent, a maior escola só para garotos de Portland. Meia dúzia de garotos está no lado de fora jogando basquete, lentamente driblando a bola ao redor da quadra, chamando um pelo outro. Suas palavras são um borrão, uma indistinta série de gritos e latidos e uma pequena mistura de risos, o jeito como os garotos sempre soam quando estão juntos em grupos, mesmo que você só os ouça de um canto da avenida ou na praia. É como se eles tivessem uma linguagem própria, e pela milésima vez penso quão grata eu sou a segregação da polícia por nos manter separados a maior parte do tempo.

Enquanto nós corremos, eu penso que precisamos de uma pausa momentânea, uma fração de segundos quando os olhos deles se movem e olham em nossa direção. Estou envergonhada demais para olhar. Meu corpo todo fica pálido-quente, como se alguém tivesse me prendido de ponta cabeça em um forno. Mas um segundo depois eu sinto seus olhos passando por mim, como um vento, e cravando em Dinah. Seu cabelo loiro brilha perto de mim, uma moeda no sol.

A dor está voltando as minhas pernas, um sentimento pesado, mas eu me forço a continuar enquanto viramos na esquina da Commercial Street, deixando St. Vicent para trás. Sinto Dinah se esforçar para se manter próxima de mim. Viro minha cabeça, mal conseguindo suspirar,

- Corre você - Eu digo, mas Dinah se ergue, braços se movendo, e quase passa por mim.

Coloco minha cabeça para baixo e estico para frente, movendo minhas pernas o mais rápido que consigo, tentando sugar ar para os meus pulmões, que parecem ter encolhido ao tamanho de uma ervilha, lutando contra os gritos dos meus músculos. Escuridão atinge as bordas da minha vista, e tudo que eu consigo ver é o alambrado que se ergue à nossa frente, de repente bloqueando nossa passagem, e então eu o estou alcançando e o agarrando tão forte que ele começa a balançar, me virando para falar "Ganhei!" quando Dinah chega um segundo depois de mim, ofegando. Nós duas estamos rindo agora, soluçando e buscando grandes ondas de ar, à medida que andamos em círculos, tentando sair.

Quando ela finalmente consegue respirar novamente, Dinah se ergue, rindo.

- Eu deixei você ganhar. - Ela diz, uma velha brincadeira nossa. Chuto um cascalho em sua direção. Ela desvia, gritando. - Continue dizendo isso para si mesma.

Meu cabelo se soltou do rabo de cavalo e eu luto para tirar o elástico, jogando o cabelo sobre meu rosto então assim posso sentir o vento em minha nuca. O suor escorre em meus olhos, pingando.

- Belo look - Eu digo e Dinah me empurra levemente e eu cambaleio, erguendo a cabeça para conseguir olhar para ela.

Ela me evita. Há uma placa no alambrado que marca o início de uma estrada estreita de serviço. Está bloqueada por um alto portão de metal. Dinah o observa e faz um gesto para que eu a siga. Eu não estive prestando muita atenção ao lugar em que estamos: os fios da unidade de serviço seguem através do estacionamento, uma floresta de lixos industriais e galpões de armazenamento de carga. Depois disso há uma familiar sequência de prédios brancos, como dentes gigantes. Essa deve ser uma das entradas laterais para o complexo de laboratórios. Vejo agora que o alambrado é enrolado em cima com arame farpado e a cada vinte pés como intervalo, há uma placa onde se lê: PROPRIEDADE

PRIVADA. NÃO ULTRAPASSAR. APENAS PESSOAL AUTORIZADO.

- Não acho que nós deveríamos... - Começo a dizer, mas Dinah me corta.

- Vamos. - Ela me chama. - Viva um pouco.

Dou uma rápida escaneada no estacionamento atrás do portão e na rua atrás de nós: não há ninguém. A pequena guarita de segurança, que fica após o portão, também está vazia. Inclino-me e olho para dentro. Há um sanduíche comido pela metade sobre um papel alumínio, e uma pilha de livros bagunçada sobre a pequena mesa próxima a um antigo rádio, que está emitindo estática e partes de música cortam o silêncio. Não vejo nenhuma câmera de segurança, também, pensei que haveria algumas. Todos os prédios do governo são vigiados. Hesito por um segundo, e então me espremo pelo portão para alcançar e seguir Dinah. Seus olhos estão brilhando de excitação, e posso dizer que isso esteve em seus planos o tempo todo, parte do seu caminho.

My Only DeliriumOnde histórias criam vida. Descubra agora