Saímos do prédio do jornal, na Avenida Rio Branco, às cinco e quinze da tarde e, graças à habilidade de Seu Chico, chegamos ao Complexo da Baiana, na Zona Norte da cidade, em menos de 30 minutos. Vinte metros após entrarmos na Rua do Valão, principal via de acesso à favela, demos de cara com uma viatura da Polícia Militar atravessada na pista. Pistolas e fuzis apontados para nossas cabeças. Ao perceberem tratar-se de um carro de reportagem, os quatro policiais baixaram as armas.
Tião e eu descemos do carro para falar com eles e fomos recebidos de forma pouco amistosa pelo sargento que comandava a equipe:
— Fala, mestre! Tá fazendo o que aqui com essa princesa? Tem uma guerra aí pra cima e acho melhor vocês darem meia-volta — disse, olhando-nos de forma debochada e tentando nos intimidar.
— Soubemos de uma troca de tiros há pouco por aqui e viemos fazer nosso trabalho, sargentooo...hãaan...Braga — respondi em tom cínico, chamando-o pelo nome estampado em seu uniforme. Há muito já havia apreendido que nessas horas é sempre melhor mostrar segurança, ainda que ela na verdade não esteja lá do seu lado.
O sargento sacou o rádio para avisar a alguém que a imprensa estava no pé do morro. Em seguida voltou-se para nós e disse que: "Uma guarnição havia sido atacada por meliantes que se evadiram para o alto do morro atirando contra os policiais". Mas garantiu que seus colegas "Não reagiram à injusta agressão para não colocar em risco a vida dos cidadãos"
Eu já conhecia de cor aquele discurso ensaiado. Acho que deve ser uma das primeiras lições que os policiais militares aprendem na academia, porque todos, não importa a patente, todos falam da mesma forma, com as mesmas palavras, igual ritmo e entonação. Tipo aqueles scripts de telemarketing. Troquem tiros ou não o discurso é padrão. Como naquele momento estava mais preocupada em apurar a minha história, perguntei à queima-roupa:
— E a moradora baleada?
Em meio ao clima tenso, o sargento não conseguiu disfarçar uma expressão de surpresa com a pergunta. Passou a vista por seus colegas e disse:
— É, princesa, parece que os bandidos acertaram uma mulher na fuga. A equipe atacada está tentando chegar até ela para socorrê-la. Se eu fosse você entrava no carro e esperava lá fora porque esse seu colete não vai te proteger aqui não.
Ainda tentava mais informações com os policiais, quando a sirene chamou a atenção para uma viatura que descia por uma das ladeiras transversais à rua em que estávamos. A cerca de 80 metros, uma Blazer da PM fez a curva cantando pneu e veio com o giroscópio ligado em nossa direção.
Um policial no banco do carona mantinha o braço direito para fora da janela do veículo e batia com a mão na lataria. "Vamos socorrer, vamos socorrer", gritava. O sargento Braga ordenou que os seus soldados entrassem na viatura que bloqueava a pista e a barreira foi desfeita. Os dois carros da polícia saíram em disparada com as sirenes gritando a todo volume. Seu Chico manobrou rápido para segui-los, mas ficou retido atrás de um caminhão no sinal vermelho, bem na esquina da Rua do Valão.
Tive certeza de que não paramos ali por acaso. Como costumo respeitar os sinais que a vida me dá, coloquei uma mão no ombro de Seu Chico e a outra no de Tião. Esperei que eles se virassem para o banco de trás e provoquei: "E aí, vamos dar uma olhada?".
Tião esboçou um sorriso e Seu Chico balançou a cabeça de um lado para o outro soltando seu tradicional bordão: "Vocês são malucos". Quando o sinal abriu fizemos a volta. Fiz o sinal da cruz mentalmente para não dar bandeira, e entramos novamente na Rua do Valão.
O Valão é uma espécie de eixo central que deu origem a duas favelas. Suas duas únicas pistas, a que vai e a que volta, são separadas por um rio fétido repleto de detritos sólidos, que costuma transbordar nos dias de chuva forte. Olhado de cima pode ser comparado a uma espinha dorsal de águas turvas, que se ramifica por várias ladeiras transversais. Às da esquerda, identificadas por números ímpares, dão acesso ao Morro da Baiana. As ladeiras da direita alimentam o Morro do Axé. As duas comunidades se fundem no fim do valão e, juntas, formam o Complexo da Baiana.
A localização privilegiada — às margens da Baia de Guanabara, próxima do aeroporto internacional e das estradas e vias expressas que levam a outros estados — criou facilidades para que a região dividida pelo valão se tornasse o maior entreposto de drogas e armas da cidade. Dizem que no topo do morro há um heliporto e um cemitério clandestino. Por conta de constantes disputas pelo comando do tráfico na região, a Baiana é considerada uma das mais violentas comunidades do Rio de Janeiro. E andava mais conflagrada do que de costume naquele último trimestre do ano.
Enquanto seguíamos devagar pela via da esquerda do Valão, meus olhos se perdiam no excesso de detalhes. Já havia estado ali algumas vezes, mas era sempre uma nova experiência. Olhava para cada rosto, cada movimento na rua, as pequenas vielas, barracos de diferentes cores, com e sem reboco, empilhados uns sobre os outros. Sempre me senti atraída por aquele grande mosaico de gente. Na mão contrária, do outro lado do rio, um fusca azul escuro com dois ocupantes passou por nós em alta velocidade. Anotei a placa.
Chegamos à esquina da Rua 3, a mesma ladeira por onde a blazer dos PMs havia descido. Seu Chico abriu as janelas, embicou o carro e começou a subir bem devagar por aquela via estreita. Depois da primeira curva avistamos um grupo de pessoas no meio da rua. À esquerda deles, o último lance de uma escadaria de pedra exibia um sinuoso rastro de sangue.
Alguns degraus acima de nós, em frente à porta de uma casa, um saco de papel amassado demarcava o início da extensa mancha vermelha. Ela escorria por toda a escada e adensava-se sobre a calçada, já no nível da rua em que estávamos. Espalhados pelos degraus, pães franceses jaziam ensanguentados.
Não tive dúvidas, a mãe de Jéssica havia sido baleada ali, naquele ponto.
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PRIMEIRA PÁGINA - Conflito na Baiana
ActionEm uma trama acelerada, tensa e totalmente viciante, a denúncia de uma menina de 9 anos coloca a jovem repórter Clara Gabo diante de um crime brutal, que pode abalar as estruturas da Polícia Militar na cidade do Rio de Janeiro. Quando sua matéria g...