Três horas e meia. Esse foi o tempo que levei entre receber o telefonema de Jéssica, ir à favela, passar em dois hospitais e retornar ao jornal. Mas parecia que eu tinha corrido três dias sem parar. Entrei na redação com as pernas pesadas. Meu corpo inteiro formigava. Entreguei o vídeo feito por Jéssica para edição e, enquanto Tião descarregava as fotos de sua câmera, fui lavar o rosto, retocar o batom e tomar um café. Precisava me recompor e mandar uma mensagem avisando que chegaria atrasada para o jantar do meu pai.
Eu e Tião narramos os detalhes do que havíamos visto e apurado para o diretor de redação, em uma reunião que contou ainda com dois editores executivos, responsáveis pela capa do jornal, além do Romero, editor de polícia, e do Bira. Assisti a maior parte do tempo calada à discussão sobre se seria ético usar as imagens, uma vez que eu as tinha obtido sem o consentimento de ninguém. Além da reprienda por ter subido o morro sem autorização da chefia, ainda tomei um megaesporro por ter entrado na casa e mexido no celular da vítima. Mostrei o post-it em minha defesa. De alguma maneira Jéssica havia me franqueado o acesso às imagens. De nada adiantou. Ignoraram meu álibi e a bronca não foi retirada.
Mas bastou assistirem ao teor da gravação para mudarem de idéia. Quando mostrei-lhes o video bruto julgaram que a "importância jornalística" da denúncia era mais forte do que meu "deslize moral". Em jornalismo as coisas são assim, sempre relativas. Dependendo do tamanho da bomba que se tenha em mãos, os fins acabam por relevar alguns meios. Usaríamos as imagens. O foco da discussão desviou-se então para a autoria do vídeo. Bira, sempre pesando prós e contras, ponderou que poderíamos colocar Jéssica em risco ao apresentar uma menina de nove anos como autora de um vídeo-denúncia contra PMs:
— Porra, só eu vejo que é muita carga pra colocar nas costas de uma criança? Esses putos podem querer se vingar
— Tá sugerindo que a gente não publique o vídeo, Bira? Essas imagens é que conferem dramaticidade ao fato e dão a dimensão da sua gravidade — ressaltou um dos editores responsável pela capa do jornal
— Claro que não. Já decidimos publicar. Mas por que caralho temos que dizer quem foi que filmou? Vamos dizer que foi um morador sem dar nomes. Que mal há em proteger a menina? — Insistiu Bira, com orelhas e pescoço cada vez mais vermelhos. Ele sempre ficava assim quando o assunto era polêmico.
Assistia a tudo calada até ser interpelada pelo diretor de redação. Pediu-me que reproduzisse minha conversa com Jéssica pelo telefone. Quando acabei de falar ele sentenciou:
— A matéria só existe por conta da coragem dessa criança. Não vamos estampar a foto dela no jornal ainda, mas a melhor maneira de protegê-la é fazer um escândalo com essa história. Qualquer um que conheça o local vai perceber que as imagens foram feitas de dentro da casa da vítima. Não podemos esconder isso. Pelo contrário, vamos só com isso na capa.
Enquanto batia a matéria em meu terminal, observava à distância a agitação dos editores, que riscavam a capa do jornal com a ajuda de um diagramador. Entre risos, tapinhas nas costas e socos no ar, pareciam crianças comemorando a vitória do time da escola. Sairíamos em letras garrafais na primeira página, com a manchete: "PMs TORTURAM MULHER BALEADA NA PORTA DE CASA". E, logo abaixo, o seguinte subtítulo em uma linha: "Filha filma tudo e pede ajuda à repórter do Diário". A capa era ilustrada por reproduções horizontais enormes de dois momentos marcantes do video. Na metade superior da página, um policial puxava a cabeça de Leninha pelos cabelos. Abaixo da dobra do jornal, outro PM chutava a vítima baleada no chão.
Tentamos marcar um encontro para mostrar o video ao comandante da PM e ver sua reação. Por telefone, explicamos que devido à gravidade da situação não enviaríamos o conteúdo por e-mail. Mas por intermédio de sua assessoria, ele disse que não podia nos receber naquela noite e prometeu comentar o caso na manhã seguinte. Também por meio de sua assessoria, a Polícia Civil informou que o delegado ainda estava tomando ciência dos fatos, mas garantiu que as armas dos PMs seriam apreendidas para confronto balístico e que eles seriam ouvidos com a maior brevidade possível. A verdade é que ninguém fazia ideia da gravidade do que tínhamos em mãos.
VOCÊ ESTÁ LENDO
PRIMEIRA PÁGINA - Conflito na Baiana
ActionEm uma trama acelerada, tensa e totalmente viciante, a denúncia de uma menina de 9 anos coloca a jovem repórter Clara Gabo diante de um crime brutal, que pode abalar as estruturas da Polícia Militar na cidade do Rio de Janeiro. Quando sua matéria g...