Descemos a Baiana nas mesmas motos e pelas mesmas curvas e vielas da subida. Dessa vez não houve tempo para enjoos. Só pensava no que acabara de viver. Meu capacete escondia bem mais do que lágrimas e suor gelado. O medo havia cedido lugar para o inconformismo e a indignação. Como uma instituição criada para manter a ordem e proteger o cidadão acaba agindo pior do que os criminosos a quem deveria combater? Não era a primeira nem a última vez que me questionava a respeito, mas atirar em uma inocente e mutilar a filha de um bandido para extorquir-lhe dinheiro ia muito além da minha compreensão.
E que tipo de bandido se despede citando um tribunal militar que sentenciou nazistas à morte? Que tipo de traficante posa de estadista e comanda seu negócio de dentro de uma biblioteca? Linho não se alinhava aos meus estereótipos. Agia como um hábil estrategista. Tudo o que me contou e mostrou tinha uma finalidade. Mas até que ponto as coisas aconteceram da forma como ele disse? Quais suas reais intenções ao me revelar todas aquelas informações? Cada um de nós guardava um interesse próprio naquela relação. Eu tinha munição para pelo menos mais duas primeiras páginas, entretanto, incomodava-me a possibilidade de ser manipulada em um plano particular de vingança.
Olhos fechados, respiração lenta. Dentro do capacete a descarga barulhenta da moto embalava minha luta contra uma segunda tempestade de pensamentos em um intervalo menor do que uma hora. Precisava raciocinar com clareza para garantir a dianteira na cobertura do caso sem, no entanto, me precipitar. Sem comprar versões ainda não comprovadas, sem colocar a vida de Jéssica em mais perigo do que já estava.
A informação do sequestro era exclusiva, mas não podia ser divulgada. Não antes de comunicada à polícia civil. Não antes do encontro marcado para a próxima madrugada. Não sem que Jéssica estivesse livre de seus algozes. No trecho final da nossa descida, pedi ao piloto da moto para darmos uma parada em frente à casa de Leninha. A escadaria fora lavada. Os pães e a mancha de sangue deram lugar a flores coloridas e a um cartaz com uma foto da vítima. Acima da imagem de Leninha, velas acesas e uma faixa de pano branco com a palavra "Justiça" pintada em vermelho. Colada na extremidade direita da faixa, a primeira página do DC dava um toque pessoal àquela homenagem. Um apelo velado que me soou endereçado a mim. Saquei o celular e fiz uma foto.
De volta à Rua do Valão, encontrei Tião e Pereira estacionados ao lado do ponto de mototaxi. Sentados sobre o capô de seus respectivos carros, braços cruzados à frente do peito, encararam-me como pais prontos a passar um sermão na filha que demorou a sair da festa. Seu Chico completou o climão ao soltar seu tradicional: "Garota maluca!". Foi a senha para os três se revezarem entre broncas, advertências e conselhos.
— Clarinha, tem que dosar esse seu jeito aí, cara. Pô, não dá pra entrar de peito aberto em tudo que é lugar. Quase infartei aqui embaixo — protestou Tião, com voz lamuriosa e os olhos marejados de alívio ao me ver.
Pereira foi mais professoral:
— Já vi muitos policiais e alguns jornalistas se darem mal por agirem como super-herois. Clara, nós temos o poder de corrigir muita coisa errada, mas a nossa segurança tem que estar sempre em primeiro lugar. O que você fez aqui hoje foi loucura.
E seu Chico encerrou o assunto aliviando o clima e arrancando risadas de todos:
— Garota, você tem mais colhões do que nós três e todos os homens daquele jornal juntos. Prefiro sair com garotas normais...Tô ficando velho pra essas coisas, sua maluca!
Pé direito para trás em ponta, braços abertos, joelhos flexionados e cabeça levemente curvada. Saudei-os com uma clássica reverence e disse que me sentia segura por ter uma retaguarda tão protetora e preocupada. Era para ser um elogio, mas a brincadeira não surtiu o efeito esperado. Em maioria, os três reforçaram os votos de protesto e recomeçaram toda a ladainha de recomendações.
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PRIMEIRA PÁGINA - Conflito na Baiana
ActionEm uma trama acelerada, tensa e totalmente viciante, a denúncia de uma menina de 9 anos coloca a jovem repórter Clara Gabo diante de um crime brutal, que pode abalar as estruturas da Polícia Militar na cidade do Rio de Janeiro. Quando sua matéria g...