Meu pai sempre me ensinou que o medo é amigo da gente. Ele se faz presente para nos chamar ao juízo. Deve ser ouvido, respeitado, mas não pode interferir em nossa vida a ponto de nos impedir de fazer o que achamos que é correto. Anos de Jiu-Jitsu e balé me ajudaram a confirmar isso na prática. Há sempre o risco de ser surpreendida por um golpe inesperado ou de se cair no palco diante da plateia. E quer saber? É bom que o receio exista dentro de você. Evita a armadilha do excesso de confiança. Mas jamais permiti que o medo me intimidasse. Naquele momento nada me parecia mais certo do que apurar a fundo aquela história.
Sim, eu ia entrevistar um dos maiores traficantes do estado, no alto de uma das favelas mais conflagradas da cidade. Precisava tomar algumas precauções. A primeira delas foi ligar para o Pereira e informar o que estava prestes a fazer.
— Alô Pereira, bom dia! Preciso da sua ajuda.
— Fala Clara. Acelerada já a essa hora da manhã? Você já não fez bagunça suficiente com essa primeira página de hoje, menina?
— Pois é, mas eu tô achando que vou conseguir um barulho ainda maior para amanhã...
—Haha, sério? Nunca duvido de você.
— Pereira, tô entrando na Baiana pra falar com o Linho.
— Você, o quê?! Tá maluca, Clara?! Esse cara é perigoso, já matou um monte de gente. Tem uma recompensa de R$ 25 mil pela cabeça dele.
— A situação é mais grave do que tá na matéria de hoje, Pereira. Parece que sequestraram a menina que fez o vídeo. E o Linho diz ter provas de que ela está com os policiais.
— Isso pode ser uma armadilha. Não se mete aí sozinha! Clara, você está proibida de entrar nessa favela, ouviu?
— Pereira, vou te mandar o celular do meu fotógrafo, o Tião, por WhatsApp. Ele vai me monitorar daqui do pé do morro. Quando sair preciso falar com você. Podemos almoçar?
— Clara, não me ignora. Não faz isso. Não tem história que valha esse risco. Eu tô indo pra Baiana agora e se você não estiver aí embaixo quando eu chegar vou ligar pro seu chefe, pro meu chefe, vou armar um circo nessa favela.
— Ótimo, sabia que poderia contar com você. Te vejo daqui a pouco, beijo e até já — Desliguei rápido porque, se conhecia bem o Pereira, ele não estava brincando e não demoraria a aparecer.
Pereira é um investigador experiente e uma das poucas pessoas na polícia em quem quase confio. Abnegado, gosta do que faz e parece não ter muito apego por nada material. Costuma repetir que o bem sempre vence o mal, mesmo sabendo que isso não é verdade. Junto com o Bira, foi uma das pessoas que mais me ajudou quando comecei a fazer matérias policiais. Nos conhecemos em um plantão de fim de semana com poucas notícias...
Domingo, 14h, cidade parada, cinco meses atrás:
Era um domingo morto, como a gente costuma dizer quando nada acontece. Nenhum e-mail, nenhuma denúncia de leitor. Por telefone, os plantonistas nos batalhões da PM e nos balcões das delegacias faziam piada com a calmaria. Para mim, um dia especialmente tenso. Meu primeiro plantão como repórter de polícia e ainda não sabia o que escrever no alto da página que seria publicada na manhã seguinte.
Até tinha uma matéria na mão sobre o aumento do número de roubos de carros no último bimestre. Os números do Instituto de Segurança Pública apontavam os bairros onde o problema era mais grave. Poderia fazer um gráfico, ouvir os comandantes dos batalhões das regiões mais afetadas, alguns moradores...Essa foi a orientação do meu editor, que chegaria no fim da tarde para fechar a página de polícia. Mas eu não queria me conformar com o plano B.
Uma das primeiras lições que aprendi quando comecei na cobertura policial é que os crimes nunca cessam em uma cidade com mais de 6,5 milhões de habitantes. O problema é que muitas vezes eles simplesmente não chegam até as redações. Nessas horas o repórter tem que ter fé e gastar sola de sapato.
Tracei um roteiro de dez delegacias, começando pela Zona Oeste, passando pela Zona Note e terminando no Centro da cidade. Convenci o chefe do plantão a me ceder um carro e fotógrafo para pegar uma matéria exclusiva com uma fonte, na delegacia de Campo Grande. Não havia fonte alguma, mas precisava de um pretexto para sair com a única equipe disponível no jornal. Minha esperança era esbarrar com uma boa história, quem sabe até com uma boa personagem. Por isso refuto a sorte no caso Dandara. Não foi por acaso que encontrei sua mãe na sétima parada da nossa ronda, duas horas e vinte e cinco minutos após deixar o prédio do DC. Prefiro acreditar que aquela tragédia estava aguardando por mim para vir à tona.
Travava uma guerra de nervos com meu motorista e fotógrafo, desde que descobriram não haver qualquer matéria exclusiva em Campo Grande. A delegacia estava vazia, tão morta quanto meu plantão, guardada apenas por um sonolento investigador que nos dispensou sem cerimônia. A situação se repetiu nas cinco paradas seguintes, até que o destino fez sua parte. Ao entrar na 21ª DP (Bonsucesso), última delegacia do meu roteiro da Zona Norte, sensibilizei-me com a história de Marlene. A manicure, de estatura média e olhos arredios, cobrava informações sobre o assassino de sua filha. Na última vez em que a jovem enfermeira de 18 anos fora vista com vida, dois meses antes, entrava no carro de um colega do trabalho. Ouvido pela polícia, o colega afirmou ter dado apenas uma carona à moça até um ponto de ônibus. Quatro dias depois de prestar depoimento, quando o corpo de Dandara foi encontrado em uma caçamba de lixo, o mesmo homem já havia desaparecido.
Marlene carregava anotações e uma foto do suspeito em uma pasta. Prometera só descansar quando o assassino que deformou o rosto de sua menina fosse encontrado. Perambulava dia e noite caçando pistas do infeliz que cortou a garganta de Dandara e dilacerou-lhe as partes íntimas com uma faca. Pereira tinha um mandado de prisão e sabia como cercar o crápula. Mas faltavam-lhe equipe e recursos para as dezenas de casos que o desafiavam diariamente. Dandara era preta, pobre, favelada. Mais uma entre tantas. Morava no fim da fila de prioridades da chefia de polícia. Mas foi com ela que aprendi que uma jornalista podia ir bem além de contar uma história. Foi com o seu caso que me dei conta de que minhas palavras tinham poder para corrigir algumas injustiças.
Com a ajuda de Pereira, o drama de Marlene ganhou a primeira página do Diário e ditou o noticiário policial durante uma semana. Fotos, antecedentes, perfil do suspeito, trechos de seu depoimento, testemunhas...A história contada em detalhes chocou a opinião pública. Entidades de Direitos Humanos protestaram contra a demora na solução do caso. O Governador gritou, a Secretaria de Segurança cobrou empenho da polícia. No fim daquela mesma semana o suspeito foi localizado e preso no interior da Bahia. Desde então, sempre que precisa dar visibilidade a algum inquérito, Pereira me procura. Quando sou eu quem necessita de ajuda, não me acanho em acioná-lo.
Não me sentia nada confortável com o que estava prestes a fazer. Mas assim como no caso de Marlene e Dandara, o drama de Jéssica havia tocado o meu senso de justiça. Não tinha mais como recuar. Anderson garantiu que o celular pegava no local para onde iríamos, no alto da favela. Então, mesmo sob protestos de Tião, combinei que ele me ligaria a cada 15 minutos. Se eu não atendesse, a ordem era avisar à redação que os traficantes da Baiana haviam sequestrado uma jornalista.
Passei mensagem para o Pereira com o número de telefone do Tião, desliguei temporariamente meu celular, respirei fundo e fui.
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#NOTA DO AUTOR:
OLÁ! CHEGAMOS À METADE DA NOSSA HISTÓRIA E AGRADEÇO POR SUA LEITURA E PARTICIPAÇÃO...
SE PUDER RESUMIR SUAS IMPRESSÕES, COMO VOCÊ AVALIA A TRAMA ATÉ AQUI?
OBRIGADO MAIS UMA VEZ PELOS VOTOS, COMENTÁRIOS E PREPARE-SE PARA O QUE ESTÁ POR VIR :)
JM COSTA
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PRIMEIRA PÁGINA - Conflito na Baiana
AcciónEm uma trama acelerada, tensa e totalmente viciante, a denúncia de uma menina de 9 anos coloca a jovem repórter Clara Gabo diante de um crime brutal, que pode abalar as estruturas da Polícia Militar na cidade do Rio de Janeiro. Quando sua matéria g...