Capítulo 4

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Seu Chico estacionou o carro em cima da calçada, bem encostado na parede, de modo a não bloquear a passagem de outro veículo pela apertada ladeira de paralelepípedos da Rua 3. Saltamos todos pelo lado do motorista e andamos em direção a um grupo de moradores. Perguntei se alguém sabia o que havia acontecido e uma senhora, muito nervosa, começou a falar:

— Eles mataram a Helena, moça. Os policiais atiraram nela pelas costas e ainda judiaram da pobre coitada.

— Mas por quê?

— Vai saber. Só ouvimos ela subindo as escadas e gritando por socorro. Depois começaram os tiros.

— O que os policiais falaram?

— Gritaram com ela e chutaram ela no chão. Foi uma judiação...

— Mas a senhora ouviu o que eles falavam?

De repente um rapaz se colocou entre nós:

— Chega! Você quer que ela seja a próxima? Fica quieta, mãe. Não fala mais nada. E você, garota, está proibida de publicar o que minha mãe falou no seu jornal.

— Calma, eu só quero ajudar. Preciso entender o que houve até para que os responsáveis possam ser punidos pelo que fizeram.

— Responsáveis? Punição?! Em que mundo você vive, garota? Aqui, no nosso, só pobre e favelado é que é punido.

— E a filha da Helena, onde está? — tentei em vão restabelecer o diálogo com a senhora.

— Chega, mãe. Vamos entrar — O rapaz levou a mãe para dentro de casa e as outras pessoas também me deram as costas.

Além do pequeno grupo na rua, muitos moradores exibiam semblantes assustados nas portas e janelas de suas casas. Dirigi-me a cada um deles, mas ninguém quis falar comigo. Àquela altura o medo já dominava a indignação. Trancaram-se e silenciaram diante do terror. Nessas horas a regra de sobrevivência que costuma prevalecer no morro é a de não ver, não ouvir e principalmente não abrir as boca sobre o que não lhe diz respeito.

Ainda insistia para falar com os moradores quando percebi que a porta da casa em frente a poça de sangue havia sido arrombada. Do meio da escada, Tião fotografou a fachada da casa, enquadrando no mesmo plano os degraus com pães franceses manchados de vermelho. Na direção da porta retorcida, pegadas desenhadas pelo sangue pareciam marcas deixadas por coturnos militares. Uma observação que certamente não repassaria aos meus chefes. Quase podia ouvir Romero, meu editor, falando: "Clarinha, também adoro Agatha Christie, mas o inspetor Poirot jamais daria um bom repórter policial. Nós não fazemos ilações. Atenha-se aos fatos". Já no dialeto do Bira o comentário seria algo mais curto e grosso como: "Porra Clara. Tá de sacanagem? Agora você investiga pegadas? Para de bancar a detetive e apura essa merda direito".

Olhei para os dois lados daquela escada deserta e mais uma vez segui meu instinto. Entrei na casa. O barraco de cômodo único tinha uma cama de casal, um armário e uma pequena penteadeira. Na parede, uma TV de 32 polegadas ainda ligada em um canal infantil. Móveis e objetos revirados. A janela fechada deixava passar luz do dia por três pontos distintos. Chamei por Jéssica e por alguns instantes tive esperança de encontrá-la dentro do armário ou encolhida embaixo da cama. Olhei ainda no minúsculo banheiro e atrás de uma bancada que delimitava o espaço para fogão e geladeira. Nada. A casa estava vazia.

Sobre a penteadeira, um porta-retratos horizontal exibia a foto de um jovem casal. Uma moça loira, muito bonita, aparecia abraçada por um rapaz mulato, de traços finos, sorriso largo, e um grosso cordão de ouro no pescoço. Os dois transbordavam felicidade. Ao lado, em outro porta-retratos, uma menina sorria de perfil. Usava uniforme de escola pública e tinha as duas alças de uma mochila rosa sobre um dos ombros. O rostinho sapeca remeteu-me à voz de Jéssica ao telefone. De repente me veio uma ideia. Liguei para o ramal da escuta na redação. Para meu azar quem atendeu foi o Bira.

— Clara, por que demorou tanto para dar retorno? Onde é que você está?

— Tô aqui no pé do morro...Tentando descobrir o que houve.

— Não me enrola, garota. Seu Chico já me falou que vocês entraram na favela. Já está anoitecendo e eu quero que você saia daí agora!

— Tá bom Bira tô saindo, mas preciso de um favor muito importante, antes de te dar um retorno.

— Sei...Fala.

— Olha aí no bina do telefone da escuta e vê se tem alguma ligação de celular entre 16:50h e 17h.

—Tem quatro ligações.

— Fala pra mim os números e me dá cinco minutos que já te retorno.

Eu e Tião começamos a ligar para os números que peguei com o Bira. Na terceira tentativa ouvimos uma música, que parecia vir debaixo da cama. Puxamos a colcha e o som ficou mais claro. Vinha de dentro da fronha do travesseiro. Yeah! Achamos o celular que Jéssica usou para ligar para o jornal. O telefone estava dentro da capa do travesseiro junto a uma caneta e um bloco de post it  amarelo, com o número do telefone do jornal escrito à caneta azul na primeira folha. A foto de abertura do aparelho tinha a imagem da mesma mulher do porta-retratos, um pouco mais velha e abraçada à menina de uniforme. O nome que aparecia embaixo da foto era Leninha.

Tentei acessar os arquivos, mas o aparelho estava bloqueado por senha. Droga! Arrisquei duas combinações que costumam ser padrão de fábrica e nada. Não tinha recursos e nem tempo para tentar quebrar o código ali e também não podia simplesmente levar o aparelho comigo. Mas e se a menina realmente tivesse feito alguma imagem dos PMs? Tentava acessar o cartão SD do aparelho com meu brinco enquanto observava as frestas da janela que dava para a escadaria lá fora. Pelo menos uma delas, logo abaixo de um post it  amarelo, era larga o suficiente para permitir que a câmera do celular captasse o que acontecia na rua. Pera aí! Eu disse post it  amarelo?!

Ao olhar mais de perto o pequeno pedaço de papel colorido colado na janela, quase não acreditei no que vi. Embaixo de uma seqüência de seis números grafados à lápis, bem clarinho e com letra de criança, estavam as cinco letras do meu primeiro nome. Não era possível que aquela menina fosse tão esperta. Ainda incrédula, digitei a seqüência de números indicada no post it  e o celular desbloqueou. Àquela altura minhas mãos que já suavam frio começaram a tremer.

Enquanto Tião reproduzia o casal do porta-retratos, a foto da menina e as frestas na janela, corri na pasta de imagens do celular e achei o que procurava. Não vi fotos de PMs, nem de ninguém baleado do lado de fora da casa. Mas havia um vídeo recente. Por trás do símbolo de play, três homens fardados apareciam no frame congelado. Antes de assistir, apressei-me em passar o material por bluetooth para o meu celular. E aproveitei para descarregar mais algumas imagens da galeria do celular. Fotos de Leninha sozinha, da menina e das duas juntas. Não encontrei nenhuma do homem do porta-retratos.

Cliquei no ícone do facebook e o perfil exibiu novamente a foto da mulher com a menina. Anotei o endereço usado por ela na rede social e, quando ia acessar a agenda de telefones, Seu Chico apareceu, pálido, assustado, na porta do barraco.

— Vambora gente. Acabei ser enquadrado com arma na cabeça por dois traficantes. Os caras falaram com alguém no rádio e me deram 1 minuto para tirar vocês daqui, antes que dê merda.

Limpei minhas digitais do celular, recoloquei o telefone dentro da fronha do travesseiro e saímos. Já entrávamos no carro quando mais alguns homens apareceram com pistolas e fuzis na rua, juntando-se aos dois que abordaram seu Chico. Fizemos a manobra observados de forma ameaçadora pelo bando. Sabe aquelas horas em que você repete mentalmente fudeu a mariola? Pois é...Foi tenso.


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#NOTA DO AUTOR:

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JM COSTA


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