Em frente à emergência do Hospital Salgado Filho avistei as duas viaturas da PM que haviam deixado o Complexo da Baiana quase uma hora e meia antes. Acionei o gravador do celular dentro da bolsa e me aproximei. Assim que me viu, o sargento Braga tomou a iniciativa de vir falar comigo:
— Foi você que ligou pro comandante e falou no meu nome, princesa?
— Foi sim, sargento. Estava procurando a nossa vítima. Como ela está?
— Está mal, no centro cirúrgico. Mas se tiver uma chance será graças à nossa equipe que a resgatou e a trouxe para cá.
Que cara de pau! Foi bem difícil segurar a onda ao vê-lo posando de herói. Lembrei do video a que assistira minutos antes e tive que me esforçar para parecer serena e desinformada. Queria ouvi-lo sem que ele soubesse das cartas que eu já tinha a meu favor.
— E por que pra cá, em vez do Getúlio Vargas, sargento?
— Ouvimos no rádio que houve um acidente e não quisemos perder tempo. Vocês da imprensa estão sempre querendo encontrar problema no nosso trabalho.
A ironia que pautava nosso diálogo podia ser comparada a um duelo. Um enfrentamento muito além das palavras. Estávamos a menos de 30 centímetros um do outro quando decidi por uma abordagem mais direta:
— O que exatamente aconteceu lá na Baiana sargento?
— Já te disse que fomos atacados quando fazíamos patrulhamento de rotina. O que mais você quer saber, minha princesa?
Seu hálito denunciava uma repugnante mistura de nicotina e álcool. Lutei para não transparecer o nojo que senti pela forma que ele me olhou enquanto prolongava as sílabas de "princesa". Devolvi a provocação com um leve sorriso e quase sussurrei em seu ouvido direito:
— E a menina? Quero saber da menina.
O semblante dele mudou na hora. Após uma ligeira piscada do olho esquerdo, o sargento Braga exibiu o mesmo ar de surpresa de quando o abordei sobre Leninha, na entrada da Rua do Valão. É curioso como costumamos repetir reações sob pressão. Alguns reproduzem expressões, outros são traídos por tiques ou espasmos involuntários... O corpo dificilmente deixa de acusar quando um golpe entra justo. Sempre gostei de analisar essas reações prestando atenção nos olhos das pessoas.
— Que menina? — perguntou olhando de relance para seus colegas de farda
— Parece que a moça baleada mora com uma filha. Vocês chegaram a ver a menina?
— Não vimos menina nenhuma. E não vamos mais falar com você. Se quiser mais alguma informação procure nossa assessoria de comunicação — Desconversou e me deu as costas batendo em retirada.
"Monstros, monstros, o que vocês fizeram com a minha filha? Seus monstros!"
Acabara de falar com o sargento, quando um fusca azul estacionou atrás das viaturas dos policiais. O pai de Leninha saiu do carro transtornado, aos berros, e precisou ser contido pelo filho para não partir para cima dos policiais. Os seguranças do hospital tiveram que ajudar o filho a segurar aquele homem possesso. Tive certeza de que nossa presença impediu os policiais de esboçarem alguma reação. Limitaram-se a olhar de longe, sem disfarçar sua indiferença pelo sofrimento do homem.
Enquanto Tião registrava a cena, que acontecia a dois metros de nós, eu tentava organizar mentalmente os últimos acontecimentos. Ainda não tinha como bancar que os PMs haviam atirado em Leninha. Mas o video feito por Jéssica dava a entender que sim E era uma prova irrefutável de que, no mínimo, eles a agrediram já baleada e indefesa no chão. Também tinha como questionar o tempo de mais de uma hora para chegar com a vítima ao hospital, em vez de levá-la para uma emergência mais próxima. O Getúlio Vargas fica a menos 10 minutos de carro da Baiana. Esse foi o tempo que levamos para chegar lá, sem pistas bloqueadas, sem acidentes.
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PRIMEIRA PÁGINA - Conflito na Baiana
ActionEm uma trama acelerada, tensa e totalmente viciante, a denúncia de uma menina de 9 anos coloca a jovem repórter Clara Gabo diante de um crime brutal, que pode abalar as estruturas da Polícia Militar na cidade do Rio de Janeiro. Quando sua matéria g...