Capítulo 1 - Erin

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CAPÍTULO 1

Noites Estreladas,
Quantos pontinhos brilhantes
eu posso contar?
O céu da boca dela
vem me chamar
É em seus beijos que
quero me perder
É exatamente onde meus lábios querem morar.
Noites Estreladas, Fragmentos

Tudo bem, Erin, foco, penso enquanto digito em meu notebook. Não deixe que essa maldita música te desconcentre.

Mas já é tarde demais. Os acordes do violão, vindos do apartamento vizinho ao meu, estão quase começando a me fazer largar tudo por aqui para ir reclamar pessoalmente sobre esse incômodo barulho que faz todos os meus nervos terem uma espécie de síncope, que com certeza não está longe de me levar à loucura. Simplesmente não sou capaz de me concentrar com essa música irritante invadindo meu espaço. Mas quem quer que esteja por trás dessas paredes parece não se importar, pois passou todo o fim de semana produzindo esses sons que ultrapassam todas as barreiras da minha pouca sanidade. Se pudesse, eu viveria num mundo silencioso. Não que eu seja totalmente contra a música. Eu até aprecio algumas pouquíssimas canções por achar as letras bonitas, mas, de modo geral, nada me é mais prazeroso que a deliciosa quietude na qual possa ouvir meus próprios pensamentos.

Vejo-me reescrevendo o mesmo trecho por diversas vezes até que, vencida, decido que o melhor a fazer é tentar descansar. Afundando meus pés descalços no tapete azul, caminho até a cama e me jogo ali. Pego um dos travesseiros e o aperto contra o ouvido, tentando inutilmente abafar o som e esquecer que, à noite, irei encontrar meus amigos num famoso restaurante, onde tocam música ao vivo. Sei que lá o barulho será ainda mais alto e mais irritante, mas não tive escolha. Quando se passa muito mais tempo escrevendo do que fazendo qualquer outra coisa, seus amigos tendem a achar que você é uma pessoa "extremamente solitária" que "necessita com urgência do convívio social".

Mais um pequeno estrondo ruge e eu olho para o céu, através da janela aberta, me encolhendo com desânimo. Ainda falta muito para que anoiteça. Então, de súbito, tenho um feixe de inspiração. Determinada, me ergo da cama, jogando o travesseiro para o lado, e caminho de volta até a mesinha. Em vez de tentar terminar inutilmente a matéria que estava escrevendo, eu decido que começarei uma nova.

Meus dedos se movem freneticamente sobre o teclado, enquanto eu digito tudo que estou sentindo nesse momento, despejando ali um furacão de palavras indignadas. Assim que termino, paro para reler e pensar num título. "Vizinhos barulhentos" parece perfeito para ser explorado e acredito que se encaixa muito bem com essa espécime não tão rara. Salvo a matéria em meu pen drive e solto uma pequena risadinha. Minha vingança está concluída mesmo que eu seja a única a me importar. Mesmo que eu seja a única a saber a quem ela está direcionada.

*

O clima de São Paulo é completamente bipolar e, apesar do calor que havia feito a tarde toda, a noite está fresca. Por isso, escolho usar um vestido branco com listras pretas, um casaco escuro e uma botinha de cano curto e salto alto. Meus cabelos eu mantenho soltos e com pequenos cachos nas pontas. Me olho mais uma vez no espelho e, constatando que minha aparência não está nada mal, pego minhas chaves e me dirijo até o elevador.

Enquanto espero, lanço para a porta do vizinho um olhar fulminante e, embora eu não o conheça, mesmo ele tendo se mudado para lá há menos de duas semanas, já sei que o detesto. Sem dúvida ele deve ser um daqueles jovens de boas, que não precisam trabalhar, usa cabelo cumprido, sonha em ter uma bandinha de escola e fica por aí atormentando as pessoas com sua música. Ok, talvez esse seja um pré-julgamento maldoso, mas não consigo dar outra forma ao rosto dele e à sua personalidade senão aquela.

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